O DIREITO E A ANGÚSTIA DA DEFESA.
Por Abdon Marinho.
NOS primeiros anos que se seguiram a redemocratização do Brasil, a médica Maria Aragão convidou para um ciclo de palestras o líder comunista Luís Carlos Prestes. Adolescente, envolvido com o movimento estudantil, participei de um destes debates que ocorreu no auditório da Biblioteca Pública Benedito Leite, um lindo espaço localizado na cúpula daquela casa, no terceiro andar.
Em um dos momentos da palestra o líder comunista narrou sobre a sua relação com o advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Pessoas, absolutamente distintas, o comunista que tinha como defensor o advogado católico praticante e considerado, politicamente, conservador, porém, ferrenho defensor dos direitos humanos.
Ainda, na oportunidade, contou-nos que na sua defesa, quando preso por ter liderado o levante comunista de 1935, aquele ícone da advocacia, à míngua de qualquer legislação que socorresse seu cliente, valeu-se da lei de proteção aos animais, o Decreto Lei 24.645/34, sancionado pelo próprio Getúlio Vargas, comandante do governo que o mandara prender, a ditadura do Estado Novo.
Mais de trinta anos depois, ocorreu-me esta lembrança diante da polêmica situação de um colega advogado que, também, na defesa de um direito de seu cliente, buscou no remédio heroico, o habeas corpus, a liberação de um veículo e, por conta disso, sofreu uma violenta reprimenda – grosseira e despropositada – por parte do julgador que examinou a matéria. Tendo o julgador, num claro excesso, recomendado que o causídico fosse submetido a novo exame de ordem, ou que se adotasse outra medida, igualmente jocosa e revestida de humilhação e constrangimento ao advogado e à advocacia.
A polêmica alcançou-me no trajeto para uns compromissos em Carutapera e Luís Domingues – mais uma vez. Uma mera coincidência ou uma comprovação de que estou indo demais ao extremo norte do estado.
Enquanto percorríamos o longo trajeto (tanto ida quanto volta), pensava sobre a situação: o quanto às vezes, a vida, as opções, nos pregam peças e nos trazem certos dissabores.
Decerto que o colega conhece os limites do remédio constitucional. Mas, não se pode olvidar que mesmo teve a pretensão de ver “livre” o veículo para o cliente – um cidadão, já alquebrado pelos anos –, que utilizava o bem que dispunha para se locomover, sendo privado de tal direito pelo retardo do Estado.
Será que apelaria para medida tão radical se o Estado (aqui incluso também o estado-juiz) tivesse agido de forma célere e entendido que por trás de uma demanda existem vidas dependendo de uma solução? Estou certo que não.
Mas, como não se angustiar quando vemos medidas – mesmo as mais singelas –, como um simples despacho, um “cite-se”, “morgarem” nas prateleiras do Judiciário? Quando, diante de tanta necessidade, um alvará não ser emitido sem uma causa plausível que não a preguiça? Como achar normal que uma mísera perícia em um veículo, passados mais de 45 dias, resta sem ser feita? Haveria algo a ser periciado, depois de tanto tempo, com o veículo sofrendo as intempéries da natureza, ao relento, pegando sol e chuva? Como explicar tais coisas ao cliente, quando o que ele reclama é algo tão simples como ter um bem que comprou, pagou e dele necessita para se locomover?
Que atire a primeira pedra o que nunca se indignou com a falta sensibilidade e mesmo senso de justiça de tantos que operam o direito.
Busquei na memória. Ainda não tinha um ano advogando (já se vão mais de vinte) quando, cuidando de uma campanha eleitoral, chegou-me um caso curioso: a emissora de televisão responsável pela geração da propaganda, ao nosso sentir, nunca cumpria como devia ou retardava no cumprimento as poucas vitórias que obtínhamos.
Um dia, já indignado (a palavra a ser usada deveria ser outra) pedi ao juiz que determinasse a prisão da presidente da emissora.
Ora, sabíamos que não havia qualquer amparo à pretensão, que, nos termos da lei, deveríamos fazer uma representação ao ministério público e que este, se entendesse, faria uma denúncia, que certamente não daria em nada.
Naquela oportunidade, ouvindo reclames diversos, precisávamos, ao menos, tentar estancar os prejuízos que estávamos tendo. Foi o que fiz.
Algum tempo depois, conversando com Walter Rodrigues, tocamos no assunto e ele foi categórico: — Abdon, fizestes muito bem. Pela primeira vez na vida alguém teve a coragem de pedir a prisão Teresa Murad Sarney. Só mesmo você.
Não sei se disse isso como um chiste ou como um elogio.
O verdadeiro advogado não tem medo de, respeitando os limites da lei, pedir e clamar pelo direito do seu cliente. Pelo contrário, é a sua obrigação.
O próprio Sobral Pinto já pontuava que a advocacia não era lugar para covardes.
Advogados, não podemos, não devemos e não temos o direito de nos acomodarmos, de não ousarmos. Não podemos nos “bitolarmos” a só fazermos aquilo que consta nos manuais.
A verdadeira Advocacia com “A” é audaciosa e ousada. A partir das demandas sociais transforma o direito.
Não podemos, diante das negativas ou das pretensões não atendidas, nós sentarmos no meio-fio e choramos, pelo contrário, temos que continuar a luta até as instâncias derradeiras, até nos fazermos ouvir.
Lembro que não faz muito tempo, acho que na eleição de 2016, chegou-nos um caso em que, pelas vias ordinárias, já tínhamos tentado tudo para reverter, sem conseguir. Como a argumentação tinha origem numa decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, chamei os colegas e disse: — vamos fazer uma reclamação ao Supremo. A reação deles foi: — tu é doido, onde já se viu ocupar o Supremo com isso; não será conhecido, etc.
Respondi-lhes pior do que perder era não tentarmos, não usarmos de tudo que podíamos para resolver o reclame do cliente. Bem, para encurtar a história, fizemos a reclamação e o Supremo não a conheceu. Mas tentamos.
A Sobral Pinto só restou, segundo o próprio cliente, o decreto-lei sancionado para a proteção dos animais. Será que não deveria usá-lo? Será que foi ridículo fazê-lo? Estou certo que não.
Conta o anedotário jurídico que, certa vez, no próprio Supremo, Rui Barbosa, defendeu, pela manhã uma tese, tendo obtido vitória e, à tarde, por ocasião de outra sustentação, defendeu uma tese que se opunha à primeira. Um dos ministros o questionou: — Dr. Rui, mais cedo o senhor defendeu uma tese diametralmente oposta à esta.
O baianinho, então, saiu-se com esta: — Vossa Excelência tem razão. Mas, na sessão da manhã eu estava errado.
Talvez seja apenas uma piada ou causo com o gênio do direito brasileiro e tal fato nunca tenha se dado. Entretanto, estou certo que ele, diferente do afirmado pelo magistrado, não se envergonharia da atitude do colega que, ante à surdez costumeira da Justiça, teve de valer-se do instrumento excepcional do Habeas Corpus na intenção de permitir que seu cliente pudesse se locomover em seu veículo.
Aliás, registre-se, não foi a primeira vez que se fez uso de tal instrumento para “libertar” coisas. Um caso, famoso pela sensibilidade – tanto do advogado quando do juiz –, foi o célebre “Habeas Pinho”, onde o advogado e boêmio Ronaldo Cunha Lima, em forma de poema, peticionou pela liberdade do seu violão e o juiz, igualmente, em poema, o deferiu.
Eram outros tempos. Quando havia o respeito mútuo, quando magistrados se permitiam fazer poemas; quando o desejo de ver valer o bom direito era superior ao direto de fazer valer o interesse próprio e as próprias vaidades; quando a Justiça tinha o direito de se fazer respeitar sem que lhe fosse apontado os próprios descaminhos.
Encerro estas poucas linhas que escrevo a bordo do ferryboat Baía de São José, que já se aproxima da Cidade de São Luís, não sem antes hipotecar minha total e solidariedade ao colega que, com destemor, ousou ir além dos limites do foi ensinado nos bancos escolares. E, faço isso enquanto lamento o fato do magistrado haver se tornado, infelizmente, ele próprio – que tem o dever zelar pelas boas relações e pacificar a sociedade – um prisioneiro das fórmulas e manuais.
Abdon Marinho é advogado.
Escrito por Abdon Marinho
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