A TRAIÇÃO DE JUDAS: UMA REFLEXÃO PARA A QUARESMA.
Por Abdon Marinho.
NO EVANGELHO de Lucas (22:48), colhemos: E Jesus lhe disse: “— Judas, com um beijo trais o Filho do homem?”.
Sertanejo, sempre tive pelo período quaresmal um respeito extremoso. Mais jovem, guardava-o com penitências ou privações as quartas e sextas-feiras o lapso entre as Cinzas e a Paixão de Cristo, nos últimos dias, sequer o gado era preso, mantendo vacas e bezerros juntos de sorte a evitar ordenha.
No interior, de minhas lembranças, a Semana Santa sempre foi período mais importante do calendário cristão.
A introspecção da Quaresma a culminar com morte e posterior ressurreição de Cristo sempre me trouxeram as maiores indagações e questionamentos.
A principal delas: a traição de Judas a Cristo.
Quando Jesus diz: — Judas, com um beijo trais o Filho do homem? Ele não afirma. Indaga pela a surpresa da modalidade, a utilização do beijo – símbolo maior do afeto –, como sinal aos captores de Cristo no jardim Getsêmani.
Ora, a traição de Judas já era conhecida por Cristo que a revelara aos seus discípulos por ocasião da última ceia. ‘E, comendo eles, disse: — Em verdade vos digo que um de vós me há de trair. Mateus, 26:21.
A certeza de Cristo quanto a identidade do traidor resta clara em seguida, em Mateus 26:25 - E, respondendo Judas, o que o traía, disse: — Porventura sou eu, Rabi? Ele disse: — Tu o disseste.
Então qual seria a natureza da traição de Judas se a mesma já se dera por anunciada? Se estava escrito que a mesma aconteceria a fim de justificar o que fora escrito para a história do Salvador?
A traição era conhecida por todos e anunciada por aquele que seria traído.
Então, é de se indagar: por que Cristo sentiu-se traído por Judas quando, antecipadamente, sabia que estava em seu destino, que a mesma viria, quando viria e forma como se daria?
Ainda assim Cristo o teve por traidor e lhe disse isso.
É sabido que dos apóstolos, Judas era o único que não era da Galiléia, era, de longe, o mais instruído e, talvez por isso, recebeu do próprio Cristo a responsabilidade para a administração do fundo comum.
Mas não foi só esta prova de apreço dispensada por Jesus ao seu traidor: curou a paralisia de seu pai e a lepra de sua mãe.
Abaixo de Pedro – o primeiro apóstolo –, Judas recebia um tratamento acima dos outros dez. Diz-se que Jesus lavou-lhe os pés e a ele permitia molhar o pão em seu próprio cálice.
Vejam o quanto isso é simbólico: justo aquele que tanta deferência recebeu, justo este tinha de ser o traidor.
Podemos dizer, então, que Cristo além de tudo que fez por Judas, tirou-o do ostracismo em que vivia – embora reconhecidamente sábio e letrado –, e o trouxe para a frente, para a fama, para o reconhecimento público, fê-lo e o reconheceu como importante entre os seus.
O que mais queria Judas, o traidor?
Não lhe fora suficiente o tratamento de filho?
A confiança para administrar o fundo comum?
Alguns sábios, estudiosos da Bíblia, dizem que Judas cumpriu um papel histórico previamente determinado. E, é certo que sim, seu ato, tido, mesmo por Cristo como de traição, foi determinante para à consolidação de uma nova fé e a expansão de todo o cristianismo.
Mas Judas não tinha consciência disso. Moveu-o a ideia da traição. E procurou os líderes do templo, Anás e Caifás com o propósito da traição e por ela recebeu as trintas moedas de prata da vergonha.
Fora motivado pelo interesse financeiro? Político? Social?
Este é o mistério. O que levara Judas a trair seu mestre? O homem que o “fez”, que em si confiou dando-lhe a administração dos recursos do fundo comum e que privava de sua intimidade a ponto molhar o pão no cálice do Senhor.
Ao testemunhar o inicio do sofrimento de Cristo, Judas tomou-se pelo arrependimento e procurou os líderes do templos para devolver as moedas que recebera pelo ato de traição.
E é Mateus (27: 3,4,5) que narra:
“Então Judas, o que o traíra, vendo que fora condenado, trouxe, arrependido, as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: — Pequei, traindo o sangue inocente. Eles, porém, disseram: — Que nos importa? Isso é contigo.
E ele, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar.”.
As trintas moedas atiradas por Judas ao Templo, seus príncipes e anciãos as tiveram como produto da ilicitude e banhadas pelo sangue inocente, não podiam ser devolvidas ao cofre das doações, então, ainda segundo Mateus, compraram de um oleiro um campo que fora destinado ao sepultamento dos estrangeiros. O campo de sangue, em referência às trinta moedas de prata da traição.
Que lições podemos tirar da traição de Judas?
Embora do ato torpe tenha nascido algo extraordinário: todo o cristianismo. Tenha sido algo que apenas confirmara o que já fora dito por profetas anteriores, tenha sido cumprida a vontade de Deus: "Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.” Mateus (26:39).
Apesar de tudo isso a traição ocorreu. Cristo: que tinha o conhecimento do passado, do presente e do futuro, a disse como todos as letras: "–– Judas, com um beijo trais o Filho do homem?”.
Os príncipes do Templo – que não tinhas a necessidade de valer-se de alguém próximo a Jesus para fazê-lo prisioneiro, este era possível de ser reconhecido por qualquer do povo, pois já pregava em Jerusalém e atraía multidões –, que recusaram-se a receber de volta as moedas objeto da traição; e o próprio Judas que não conseguiu viver com a culpa pelo ato de sordidez que cometera, suicidando-se antes mesmo do julgamento e morte de Cristo.
A lição derradeira é que traição é um ato torpe em si, mesmo com com todas as atenuantes capazes de elidir a mais famosa traição da história, ela estava lá, ela existiu.
Ainda que dela tenha advindo uma “nova vida”, ela continuou e continua a existir pelos séculos sem fim, Amém.
Abdon Marinho é advogado.