PATRIMÔNIO HISTÓRICO: DE CAFETEIRA A KÁTIA BOGÉA.
Por Abdon Marinho.
RECEBO de um amigo uma coleção de fotografias do Complexo Deodoro (Praça Deodoro, Praça do Panteon, alamedas Silva Maia e Gomes Castro). Ainda não tive oportunidade de ir constatar com os próprios olhos a revitalização daqueles logradouros que tantas recordações trazem de uma parte da minha juventude. Pelas fotografias, entretanto, é possível verificar a grandiosidade do trabalho executado e, em apenas duas palavras defini-lo: encantamento e gratidão.
Só quem tem amor e vivência com a capital do estado dimensiona, com exatidão, sua importância para cidade. Só lamento que a reforma e revitalização não tenha alcançado o entorno do Liceu Maranhense (onde estudei) indo até o Ginásio Costa Rodrigues, cobrindo quase todo o Campo de Ourique. Mas, o que está feito representa uma extraordinária obra.
Há mais de trinta anos quando cheguei a essa ilha, chamava tudo no entorno da Biblioteca Benedito de Leite de Praça Deodoro, a exceção do Panteão que ficava mais abaixo.
Eram os tempos da redemocratização do país, Sarney acabava de tomar posse no lugar de Tancredo Neves. Iniciávamos as tratativas para fundação dos grêmios estudantis na cidade e em todo Maranhão, aqueles bancos quadrados de pedra ou as escadarias da biblioteca, não raro, eram nossos locais de reuniões, tanto para tratar das pautas estudantis como para apoiar os movimentos dos trabalhadores, como o foi na greve dos professores de 1986.
Já naquela época a velha Deodoro estava degradada – o que foi piorando nos anos seguintes –, mas era nosso espaço, nossa trincheira de lutas.
Anos depois, não me recordo o que fui fazer no centro, passei pela Deodoro. A Praça fora transformada numa feira de imundice, com o mau cheiro de tudo que é produto, empesteando o ambiente, gordura e sujeira, veículos, barracas, tudo em tamanha desordem, que fui tomado por um sentimento de imensa tristeza – a Praça Deodoro já não era mais o espaço do povo, como o céu é do condor, nas palavras do baiano Castro Alves.
O desalento só aumentou ao passar em frente a biblioteca e me deparar com um horrendo gradeado confinando a escadaria. Mais que um prédio bonito como aquele encerrado em grades, senti o aprisionamento do próprio saber e das minhas memórias.
Voltei triste para casa. Lembrava das amizades feitas e consolidadas naqueles bancos de pedras, em frente ao Colégio Rosa Castro, quando saíamos do Liceu para pegar os ônibus que nos levaria as nossas casas, ou das vezes que lá ficávamos esperando a sirene tocar para corrermos para entra no colégio; ou, ainda, de quando ficávamos nas escadarias da biblioteca, primeiro para contemplar o pôr do sol e depois para ficar num bate papo enquanto esperávamos os ônibus que nos levariam embora esvaziar um pouco.
Tudo pálido registro em meio a tanta sujeira, desordem urbana e grades horrendas.
É destas lembranças que ressurgem todo o encantamento e gratidão com a revitalização do Complexo Deodoro (que depois ainda será somado à revitalização da Rua Grande), sinto que estão devolvendo à cidade uma parte de sua história, cabendo aos governantes de agora e do futuro, a missão de conservar e manter o extraordinário serviço feito.
Talvez seja pedir muito aos nossos governantes, tendo em vista a falta de zelo com que trataram e tratam o Centro Histórico, revitalizado pelo ex-governador Cafeteira através do Projeto Reviver há trinta anos.
O Complexo Deodoro – que não sei se engloba a Rua Grande –, é a maior obra de revitalização feita no estado depois do Projeto Reviver, inaugurado em 1989.
No livro Reviver, de 1992, que mostra em detalhes, com fotografias e documentos tudo que foi realizado no Centro Histórico de São Luís e que tem o prefácio de Américo Azevedo Neto, o extinto ex-governador escreve: “Muitos pensam e por isso afirmam haver eu conquistado São Luís e o Maranhão. A realidade é o inverso: não fui eu quem conquistou essa cidade e este Estado, eu é que fui por ambos conquistado. Não fui eu quem prendeu, eu é que fui a presa. Tudo o que fiz ou venha fazer terá que ser visto em razão do fato de ter me rendido aos encantos desta cidade e do seu povo e às possibilidades deste Estado. Chegado aqui, logo a cidade me considerou filho e me batizou Cafeteira; logo o povo me chamou irmão e eu me senti escravo”.
Faço essa observação para registrar que as duas maiores obras de revitalização da nossa capital devemos a “estrangeiros” que conseguiram enxergar aquilo que nós, maranhenses, pouca ou nenhuma importância temos dado: o nosso Centro Histórico.
O primeiro, o ex-governador Epitácio Cafeteira, paraibano de João Pessoa, porém maranhense de coração, que tendo sonhado em fazer um poema para agradecer a hospitalidade e o carinho com o qual foi recebido, fê-lo de uma das mais extraordinárias maneiras, um “Poema em Pedra e Cal”, legando-nos uma das mais complexas e completas obras de revitalização que o Maranhão já assistiu, investindo recursos volumosos e contratando a mais qualificada equipe técnica com o propósito de devolver a capital a grandiosidade histórica do seu passado.
A segunda, a presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Kátia Bogéa, sergipana de Lagarto, radicada na capital desde 1979, tendo dedicado toda sua vida profissional de historiadora e servidora pública, desde seu ingresso como estagiária no IPHAN, em 1980, à pesquisa do patrimônio maranhense e ao trabalho de preservação e proteção do Centro Histórico de São Luís e Alcântara.
Se, apesar de tanta dedicação e tenacidade, assistimos a perdas irreparáveis no nosso patrimônio histórico, dá para imaginar o teria acontecido sem ela é sua equipe.
Por este trabalho, sobretudo, no cargo de superintendente regional, que ocupou de 2003 a 2015, foi alvo das insatisfações de muitos maranhenses que, sem constragimentos e indiferentes ao magnífico trabalho que sempre desempenhou, tramaram e conseguiram afastá-la do cargo, nos estertores do governo Dilma Rousseff.
Essa a maior “contribuição” ao trabalho de revitalização do Complexo Deodoro, pois alçada à presidência do órgão, Kátia Bogéa pode implementar com mais eficiência o PAC Cidades Históricas que articulara com sua equipe durante a sua gestão frente ao órgão regional junto à prefeitura da capital.
Essa “contribuição” fez um grande bem ao Centro Histórico de São Luís, a Alcântara, a Pindaré-Mirim, e a diversas outras manifestações culturais e ao patrimônio imaterial do nosso Estado, como o registro do Tambor de Crioula e do Complexo Cultural do Bumba Meu Boi.
O que dizem é que neste pouco tempo frente ao IPHAN, não faz mais pelo nosso patrimônio devido ao desinteresse das autoridades locais que, muitas das vezes, nem a atendem ao telefone ou cometem a descortesia de inaugurar como suas obras onde não deram um prego.
O Maranhão, assim, talvez, esteja perdendo uma oportunidade única de avançar na recuperação de uma grande parcela do seu Centro Histórico, concluindo outras etapas do Projeto Reviver, idealizado por Cafeteira há trinta anos, além de conservar aquilo que foi feito com tanta dedicação naquela oportunidade.
É bem possível que isso seja só um fuxico, mas me permito dar-lhe crédito diante da informação de que, até hoje, apesar de tudo que já fez e continua fazendo pelo nosso Estado, nunca as excelências estaduais ofereceram ou aprovaram a Dra. Kátia Bogéa um título de cidadã maranhense. Um dos poucos estados com essa falta. E olha que já deram título de cidadão maranhense a tantos tipos que até o desvalorizou, mas não a quem tem contribuição efetiva dada ao Maranhão.
Mas é assim mesmo. Nossa velha Deodoro está de volta. Vamos torcer – e rogar a Deus –, para que as autoridades a zele e a conserve como patrimônio da cidade que tanto amamos.
Abdon Marinho é advogado.