AbdonMarinho - O DIA DE ANO.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O DIA DE ANO.

O DIA DE ANO.

Por Abdon Marinho.

SEM­PRE tive curiosi­dade em saber como cer­tas lem­branças ficam gravadas na nossa mente. Algu­mas até pare­cem que foram grafadas a fogo.

A curiosi­dade é ampli­ada quando tais lem­branças remon­tam à infân­cia mais tenra. Acred­ito que min­has lem­branças mais anti­gas alcançam o primeiro ou segundo ano de minha vida. Mas, de todas, entre­tanto, nen­huma supera os reg­istros daque­las rela­cionadas ao “dia de ano”.

Ape­sar de pobres, a casa era grande, muito grande, de pau a piqué e chão batido (exceto os depósi­tos com piso de madeira), pos­suíam diver­sos quar­tos e depósi­tos onde meu pai guar­dava as safras de arroz, milho e fei­jão do seu próprio plan­tio ou as com­pra­dos na folha de pro­du­tores viz­in­hos. De um lado da casa ficava um cur­ral onde recol­híamos o gado, ao fundo um chiqueiro de por­cos e na outra lat­eral um flam­boy­ant que chamá­va­mos de “som­brião”. As gal­in­has eram cri­adas soltas no terreiro.

O dia já cedia lugar à noite e as lam­par­i­nas já estavam aces­sas naquele domingo.

No quarto bem sim­ples, com pare­des à altura das trav­es­sas e fechado com uma cortina, minha mãe sen­tia o iní­cio das con­trações do seu último parto enquanto con­ver­sava com seu irmão, meu tio Praxedes.

Não havia novi­dade, com cerca de trinta e seis anos já era o seu décimo parto. A parteira era a esposa de tio Antônio, o irmão mais velho do meu pai, que “pegara” todos os nasci­dos no povoado, exceto a mim, que nasci em um domingo e quando ela chegou já tinha nascido.

Com o priv­ilé­gio de ser um dos querid­in­hos da mamãe, brin­cava no quarto fazendo algazarra própria de cri­anças. Com manha fin­gia pren­der o dedo na dobradiça do cofre de meu pai para tio Praxedes ir tirar. Era um cofre de pé, cinza, com dois com­par­ti­men­tos, o de cima com chave e seg­redo numa porta grossa e den­tro duas prateleiras e uma gavet­inha ave­lu­dada na parte interna; a parte debaixo, com porta mais fina e tran­cado a chave.

Quando meu avô decidiu com os seus fil­hos deixarem o Rio Grande do Norte para virem ter por essas pla­gas – após uma incursão de tio Pedro Cal­heiro, seu filho caçula –, trouxe toda a família (dez fil­hos, noras, gen­ros e já alguns netos, inclu­sive, casa­dos) e ainda alguns ami­gos. Assentaram-​se no Lugar depois denom­i­nado Cen­tro Novo entre os povoa­dos Paciên­cia (Gov­er­nador Archer) e Pedrosa (Gonçalves Dias), que ainda não eram eman­ci­pa­dos quando chegaram. Tio Praxedes, irmão de minha mãe era casado com tia Josefa, irmã de meu pai.

Minha mãe assistindo aque­las trav­es­suras no quarto, de sua cama, dizia ao irmão: — meu filho será um doutor para cuidar dos irmãos dele.

Não tín­hamos reló­gio ou noção do tempo, mas lem­bro que fiquei por lá até a hora alguém me levar para minha rede no quarto da minha avó, mãe de meu pai, a quem chamá­va­mos de “titia”. D. Mari­inha era uma sen­hor­inha pequena de cabe­los muito alvos e olhos azuis-​celestes. Ainda lem­bro que era como se olhásse­mos dois pedaços do céu. Fora mãe de dez fil­hos – além das per­das –, alguns já tin­ham par­tido como tia Zul­mira que mor­rera antes do meu nasci­mento e dela só sabia de ouvir con­tar; e tia Josefa, que mor­rera de parto cerca de um ano antes.

Ainda hoje, no cemitério do nosso povoado, sobre a sepul­tura dela existe uma cruz grande e sobre o seu braço uma cruz­inha menor lem­brando o bebê que mor­reu com ela.

O resto da noite – já não sei se foram son­hos ou delírios –, ouvia/​sentia os movi­men­tos de pes­soas den­tro casa, entrando ou saindo, murmúrios.

As lem­branças níti­das já são do dia seguinte. A casa inteira tomada pelo clamor, o choro alto do meu pai, minha avó, de todos os fil­hos, tias, tios, pri­mos, par­entes próx­i­mos, ami­gos. A comu­nidade inteira. Todos em pran­tos, incon­soláveis: D. Neuza tinha mor­rido. Tivera uma eclâmp­sia e não resi­s­tira. Mor­rera no décimo parto.

A outra lem­brança é da minha mãe já sendo velada em uma cama na sala. Minha irmã então com dois anos sendo cuidada por alguém, assim como o meu irmão recém-​nascido.

Eu com meus cinco anos estava per­dido em meio a toda aquela con­fusão.

O que acon­te­ceu? Me per­gun­tava assus­tado. Não o enten­dia nada do que estava acon­te­cendo, não sabia que dali pra frente não teríamos mais nossa mãe e que sen­tiríamos todas as dores decor­rentes deste fato.

Era o primeiro dia da nossa orfan­dade, a par­tir do qual viveríamos como Deus cria batatas na beira do rio.

Anos depois – ainda criança/​adolescente –, achei uma estranha semel­hança entre a nossa tragé­dia pes­soal e a parte ini­cial da obra de José Lins do Rego, “Menino de Engenho”, de 1932, como vida fosse uma cruel imi­tação da arte.

Durante anos não con­segui pas­sar das pági­nas ini­ci­ais.

Aquele dia pas­sou a ser, para todos da nossa família, o “dia de ano”, uma data em que acen­deríamos velas e rezamos para lem­brar o pas­sa­mento de nossa mãe. A data ini­cial: 13 de agosto de 1973, segunda-​feira. Data a par­tir da qual nada mais seria como antes.

Esta é a minha lem­brança mais dolorosa. Nestes anos todos nunca a esqueci um dia sequer.

Abdon Mar­inho é advogado.

(Texto extraído do livro “Memórias e out­ras Crôni­cas”, de minha auto­ria, que, talvez, seja lançado algum dia).