SOBRE O LUGAR E O PAPEL DAS MULHERES.
Por Abdon C. Marinho.
CONFORME já expus em outras crônicas, sempre que viajo aproveito os grandes percursos das estradas para observações e para reflexões.
Nos últimos dias tinha uns compromissos em Belém (PA) e outros em Luís Domingues (MA). Só consegui passagem para o Ferry-Boat das 13 horas. O amigo e contador Max Harley, companheiro das viagens que faço para a região, fez o transbordo no Junco do Maranhão e seguiu para Luis Domingues enquanto que eu segui para Belém. Cheguei ao destino perto das onze horas da noite, no caminho pude observar que a rodovia que percorria sofreu uma boa melhorada ao atravessarmos a ponte que separa os estados; observei que Belém e as cidades que a antecede passam por significativas obras de mobilidade.
Passei o dia inteiro nos compromissos e quando desocupei, já depois das dezenove horas, decidi ir para Luis Domingues, para os compromissos no dia seguinte. Por conta dos engarrafamentos, conseguimos deixar a cidade depois das vinte horas.
Seguimos viagem, já era madrugada quando adentramos no Maranhão.
Na estrada, por conta da hora não me dei conta de conferir, observei um conflito agrário que se desenrola no Município do Junco ou Amapá. Faixas na rodovia clamando contra a “grilagem” de terras e protestando contra a prisão de uma líder camponesa e pedindo sua liberdade; outras dizendo que a “Campina” resiste.
Em mais de vinte vinte anos atuando na região, até onde me recordo, é a primeira vez que vejo um conflito tão latente e que pode ter consequências graves.
Durante o expediente da manhã recebemos um convite para participar de uma reunião com a presidente do CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes) e o Conselho Tutelar local.
O assunto principal – e mais grave –, da reunião com as conselheiras e conselheiros tutelares foi a denúncia que os mesmos fizeram em relação a falta de estrutura e/ou comprometimento das autoridades policiais e da área da saúde em relação ao atendimento prioritário que deve ser dispensado as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Narraram, por exemplo, que o hospital regional não possui estrutura ou médicos peritos para atender as crianças, sendo que não têm conseguido fazer os necessários exames de conjunção carnal nos casos de estupro, que são mais comuns do imaginamos. Narraram que em apenas um mês o município registrou oito casos de estupros, isso numa localidade que possui menos de sete mil habitantes.
Sem contar que sabemos que para cada caso de estupro relatados inúmeros outros casos não chegam ao conhecimento dos conselhos.
A situação, de tão grave, já os tinham levados a marcar uma reunião dos conselhos tutelares dos quatros municípios da região para o dia seguinte: Carutapera, Luís Domingues, Godofredo Viana e Cândido Mendes, para a qual eu “já” estava convidado.
Naquele dia só consegui chegar na pousada tarde da noite, quando, “por alto”, passei a acompanhar a repercussão do discurso da deputada estadual do Maranhão, Mical Damasceno (PSD).
No dia seguinte, ausentei-me do expediente na prefeitura e fui até a câmara municipal para reunião com os quatro conselhos tutelares.
Conselheiras e conselheiros tutelares relataram as mesmas coisas que já me fora relatadas no dia anterior.
Sugeri que os quatros conselhos fizessem um documento comum relatando as dificuldades em desempenharem seus papéis de conselheiros e encaminhassem a todas autoridades competentes: Governo do Estado, Procuradoria Geral de Justiça; Assembleia Legislativa; Comissões de Defesa da Criança e Adolescentes da Câmara, Senado, OAB, etc.
Na oportunidade me comprometi a ajudá-los a fazer chegar ao destino final suas inquietações e denúncias.
Fiz essas considerações iniciais antes de adentrar nos aspectos “institucionais” da fala deputada estadual, para mostrar que o Maranhão (e nosso país) possui problemas muito maiores e deveriam, efetivamente, serem objeto da preocupação das excelências.
São conflitos agrários, são problemas na estrutura viária, são problemas na saúde, como esses relatados por conselheiros tutelares que não conseguem (ou tem dificuldades para conseguir) um mísero exame de conjunção carnal para uma criança vítima de estupro – e são centenas, talvez milhares –, problemas na educação, que ainda possui baixos indicadores, problemas sociais causados pelo baixo desenvolvimento do estado, etc. etc.
São tantos desafios que precisam ser vencidos, com o consórcio e colaboração de todos, que chego a conclusão que uma das poucas pessoas que não sabem do seu papel é a nobre parlamentar.
Uma pessoa homem ou mulher somente se torna deputada ou deputado – após conseguir a votação da população –, depois que faz um juramento.
Diz o regimento interno da Assembleia: “Examinadas e decididas, pelo Presidente, as dúvidas, se as houver, atinentes à relação nominal de Deputados, será tomado o compromisso somente dos empossados. De pé todos os presentes, o Presidente proferirá o seguinte compromisso: “PROMETO MANTER, DEFENDER E CUMPRIR A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL E CONSTITUIÇÃO DO ESTADO, OBSERVAR AS LEIS, DESEMPENHANDO COM LEALDADE, DEDICAÇÃO E ÉTICA O MANDADO QUE ME FOI CONFIADO PELO POVO DO MARANHÃO”. Ato contínuo, feita a chamada, cada Deputado, de pé, ratificará o compromisso dizendo: “ASSIM PROMETO”.
Vejam que o primeiro compromisso dos “representantes do povo” é manter, defender e cumprir a Constituição do Brasil.
Quando a parlamentar, mesmo dentro do Parlamento, e gozando de todas as imunidades que cargo lhe confere, se “insurge” contra a Constituição ou defende o oposto do ela estabelece, ao meu sentir, precisa ser chamada a atenção, admoestada ou sofrer alguma punição.
Poderia ter sido na hora, pela presidente ou por qualquer outro parlamentar.
A Constituição do Brasil, que todos eles prometeram, solenemente, manter defender e cumprir é bastante clara.
Estabelece logo no artigo 5º, que é cláusula pétrea:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Vejam que a cabeça do artigo já estabelece como parâmetro a igualdade entre todos perante a lei, não admitindo distinção de qualquer natureza.
E, como, que para reforçar, o inciso primeiro do mesmo artigo arremata dizendo que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
É de se observar que a parlamentar ao pregar a “submissão” da mulher em relação ao homem defende o oposto do que estabelece a Constituição Federal.
A polêmica fala da deputada, parece que tinha como “pano de fundo” a “defesa da família” em uma sessão marcada para o dia 15 de maio próximo.
A Constituição Federal, também, trata da família. No art. 226, está dito: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. E, o parágrafo quinto do mesmo artigo, arremata: “§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Como podemos perceber a única “submissão” existente na sociedade conjugal é a de todos perante a Constituição.
Vivemos tempos “tão banais” que mesmo após a imensa repercussão negativa da fala e da imagem da deputada, a Assembleia Legislativa não se deu conta da gravidade dos fatos emitindo uma nota dizendo a sessão do 15 maio próximo será aberta à participação de “todos e todas”. Ora, seria admissível que se vedasse a entrada de mulheres no parlamento para assistir ou participar de uma sessão (qualquer que fosse) alusiva ao Dia da Família? Colocariam um cartaz ou alguém para “revistar” para conferir se apenas os “machos” entrariam no recinto?
Sobre o pronunciamento da deputada a nota esclarece tratar-se de “uma “opinião” da parlamentar, “respeitada” dentro da pluralidade que compõe o Parlamento Estadual, que representa todos os segmentos da sociedade maranhense, em suas diversas forças políticas e linhas ideológicas”.
Então, pelo que entendi, se temos um segmento da sociedade que defende a “submissão” das mulheres em relação aos homens, está tudo bem? Dar-se-ia o mesmo se tivéssemos um segmento defendendo a supremacia racial? A volta da escravidão, etc.?
Quer me parecer que tão grave quanto o pronunciamento da deputada é o posicionamento institucional da Casa e dos seus pares.
Colocar na categoria de “opinião” ou de “linha ideológica” a afronta da Constituição Federal e Estadual, me parece um grave equívoco que poderá trazer outros desdobramentos.
Entendo que os demais parlamentares – menos os que concordam com o que foi dito –, deveriam ter protestado na hora ou encaminhado pedido de apuração junto ao Conselho de Ética. Ainda que seja para tal Conselho dizer a deputada que desde a Proclamação da República, em 1989, a igreja encontra-se separada do Estado; que a fé de cada um é assunto privado e que o Estado deve “se meter” o mínimo possível, se não, nunca; lembrá-la que jurou manter, defender e cumprir a Constituição do Brasil; que a “submissão” defendida por ela para as mulheres não encontra amparo em qualquer dispositivo legal além de atentar contra a ética e o decoro do cargo.
Nem reputo “maldade” na fala da deputada, mas, sim ignorância, desconhecimento sobre a realidade de mulheres e crianças no Brasil e no Maranhão.
Uma realidade de abusos, desigualdades, violências e violações.
Ao usar como púlpito a tribuna da Assembleia para pregar contra a Constituição Federal e contra os avanços civilizatórios que tenta igualar em direitos e obrigações os gêneros, a deputada presta um desserviço à sociedade e esquece que só tem a oportunidade para dizer tais enormidades graças a luta incansável de outras mulheres que a precederam.
Para ela, as palavras do Cristo pregado na cruz: “perdoai, eles não sabem o que fazem”.
Abdon C. Marinho é advogado.