ABORTO, MACONHA E OUTRAS POLÊMICAS (parte 1).
Por Abdon C. Marinho.
OS MAIS sábios que me antecederam tinham por norte uma convicção: que a estupidez dos seres humanos pareceria-lhes ilimitada.
Cada vez mais, nos dias atuais, os debates eivados de convicções inquebrantáveis dar-lhes razão.
O Brasil vive, como poucos, esse Fla x Flu de radicalismos sobre tudo. Até sobre a cor do pavilhão nacional o debate é inconciliável.
O problema em si, nem são as divergências, mas, principalmente, a qualidade do debate. O cidadão forma sua convicção por alinhamento ideológico, religioso ou por qualquer outro viés e pronto, aquilo se tornou um dogma insuscetível de qualquer discussão ou possibilidade de análise por qualquer outro prisma que não seja o seu.
Muito pior que isso é que para firmar-se como “certo”, como o “dono da razão” pouco importa falsear a verdade ou difundir informações falsas.
Como ninguém parece, sequer, interessado em ouvir outros posicionamentos ou argumentos discrepantes, chegamos a situação em que não existe mais debate no Brasil. Cada um faz suas pregações para os seus rebanhos (nada a ver com o “gado” de lado a lado) e tenta impor seu ponto de vista, sem concessão, aos outros.
Veja como é irônico: estamos todos tão próximos uns dos outros, com tanto acesso às várias formas de comunicação, mas perdemos a capacidade de dialogar e de nos entendermos sobre quaisquer coisas.
Somos um espécie de Babel dos tempos modernos.
Em meio a tudo isso – e também em razão disso –, dois temas viraram motivos para o “cabo de guerra” entre os extremos: a questão do aborto e um julgamento sobre a descriminalização da posse de até quarenta grama de maconha, para consumo próprio, pelo Supremo Tribunal Federal - STF.
Cumpre esclarecer ao leitor que chegou até aqui que não é minha intenção convencê-lo de nada (ou mesmo de tentar fazer isso) e, menos ainda, concordar com o posicionamento formado de quem quer que seja.
Nossa intenção é tão somente debater os temas – talvez o mais cômodo fosse apenas ficar com o meu próprio ideário a respeito dos mesmos e guardar pra mim o que penso, mas não é do meu feitio.
Logo que entrei na faculdade de Direito aprendi com o mestre Alberto Tavares, então lente de Direito Processual Penal que a tudo deveríamos analisar com grano salis - no sentido que nos ensinou “com ponderação”, “com parcimônia”, com cautela, com uma pitada de sal.
Dos bancos da faculdade, trouxe para a vida tal ensinamento. Vez ou outra, em algum texto ou mesmo discussão com algum amigo, cito a frase do mestre: — cum grano salis doutor. Cum grano salis.
Vejamos o tema do aborto.
O assunto veio à baila depois o presidente da Câmara dos Deputados aprovou em vinte três segundos que um projeto de lei tratando do assunto tivesse urgência na sua tramitação, ou seja, que fosse para ser votado diretamente em plenário sem qualquer discussão nas comissões daquela Casa.
Segundo dizem essa votação relâmpago e com o endosso de quase todos líderes partidários seria uma estratégia para encurralar o governo federal para que o mesmo “mostrasse a cara” em um tema tão sensível.
O projeto de lei que ultrapassou quaisquer outros temas de urgência na pauta nacional traz de relevante a equiparação a homicídio simples a interrupção da gravidez – em qualquer situação –, após a vigésima segunda semana de gestação.
Essa equiparação permitirá a condenação da mulher a uma pena de até 20 anos de reclusão. A conduta mais gravosa do Estatuto Penal é justamente o homicídio: “Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”.
A lei brasileira (e uma decisão do STF) permitem o aborto em casos de estupro, de risco de vida para a mãe e no caso de fetos anencéfalos. Nesses casos não haveria limitação temporal à prática do aborto.
Caso o projeto de lei seja aprovado as três situações em que é permitido o aborto, a partir da vigésima segunda semana de gestação passará a ser considerado homicídio simples, com a pena estabelecida nos moldes descritos acima.
Conforme já amplamente debatido e exposto, no caso da mulher (ou menina ou adolescente) que foi estuprada a sua pena por haver praticado o aborto, em tese, se torna maior do que aquela que seria conferida ao estuprador. Vejamos: “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) § 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)”.
Pesquisas mostram que a violência contra mulher, principalmente, o estupro é uma prática recorrente com milhares acontecendo diariamente.
A essas mulheres que já sofreram (e sofrem) a violência lhes é destinada uma pena “acessória” de não poder praticar o aborto sob pena de responder criminalmente por homicídio e, se condenadas, cumprir uma pena bem superior ao do estuprador.
E o caso de crianças e adolescentes que são estupradas dentro da própria casa e que, por medo, vergonha, e outros constrangimentos só vão saber que estão grávidas após o lapso temporal, também serão obrigadas a serem mães quando, sequer, tiveram o direito de serem filhas?
E caso da gravidez que representa um risco de morte para mãe e esse risco só foi detectado já após a vigésima segunda semana ou mesmo no momento parto, os médicos estarão obrigados a permitir a morte da mãe para salvar o filho?
E o caso dos fetos anencéfalos detectados também após a vigésima segunda semana, as mães e famílias também serão obrigadas? Com qual suporte do estado?
Milhares de estupros são cometidos diariamente, muitos nos seios das famílias, das escolas, das igrejas, nos lugares onde crianças e adolescentes (e também as mulheres) deveriam ser protegidas – e não são.
Milhares de meninas de 10, 11, 12, 13 anos (até menos) são violentadas diariamente neste país, repito, dentro de casa, dentro de escolas, de igrejas, etc. na maioria das vezes esses estupros é abusos são cometidos por pessoas de “dentro” de casa. Indago essas meninas, abusadas, ameaçadas, se engravidam até sem saber, descobre a gravidez, se praticar o aborto, vão responder ao ato infracional (no caso a partir dos 12 anos), correspondente ao homicídio simples e ficarem “encarceradas” por três anos?
A situação toda me parece absurda do ponto de vista de que os nossos representantes ignoram realidades básicas da vida dos cidadãos comuns. Não sabem o que falam, não tem conhecimento das dificuldades que passa a população.
Cerca de um milhão de abortos são cometidos anualmente, muitos em situações de insalubridade e de risco para quem os pratica.
Vejam, não estou estabelecendo um juízo de valor sobre as coisas, mas, entendo, que assuntos sérios, de interesses da sociedade, não podem sem aprovados como “moedas de chantagem política”, sem que deputados e senadores se dêem ao trabalho de “estudarem”, em profundidade, todos os impactos do que estão aprovando.
Outro dia, vi de uma deputada, subscritora do referido projeto dizer que ela imaginava que o mesmo iria proteger as mulheres.
Isso uma das autoras do projeto que não se deu o trabalho de antes de colocar sua assinatura saber que o que estava fazendo. Assinou com base em suas convicções pessoais, seus dogmas religiosos, o alinhamento ao seu grupo político.
Ora, isso não está certo, não é admissível que os representantes do povo tomem decisões que impacta a vida e a liberdade de pessoas baseados em seus dogmas de fé, nos seus preconceitos ou no disse o pastor ou o padre de seus púlpitos.
Continua …
Abdon C. Marinho é advogado.