O Fenômeno Bolsonaro – Parte 2.
Por Abdon Marinho.
AS MANIFESTAÇÕES populares de 2013, além daquelas pautas específicas contra o aumento de passagens do transporte coletivo, contra a violência policial, contra os megaeventos esportivos, etc., tinham com pano de fundo uma insatisfação coletiva contra a representação política, contra a corrupção, contra a impunidade.
Não podemos esquecer que uma de suas consequências foi o arquivamento da PEC que limitava o poder de investigação do Ministério Público, o fim do voto secreto para cassação de mandato parlamentar; lei anticorrupção, que responsabiliza empresas por crimes contra a administração pública; a lei que define organização criminosa e define as regras para a delação premiada.
Com pautas bem semelhantes estes mesmos cidadãos foram às ruas nos anos seguintes em protestos a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Se fizermos uma análise, as pessoas que estiveram presentes as manifestações de 2013 e, depois, contra a corrupção, na defesa da Operação Lava Jato, e favoráveis ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, são, basicamente as mesmas, ou, é certo, que as que estão indo as ruas hoje a favor do governo do senhor Bolsonaro, integraram aqueles movimentos.
O que mudou foram as pautas.
Muitas daquelas pessoas que gritaram “fora Dilma”, “chega de corrupção”, e clamavam por mais democracia, por mais transparência, por respeito ao dinheiro do contribuinte, etc., estão indo as ruas por pautas compatíveis com os anos 20, não de 2020, mais de 1920.
A triste realidade do Brasil é que as pessoas “emburreceram”. A tal ponto de fazerem a defesa de pautas com cem anos de atraso, clamando por ditadura, contra a ameaça comunista, tal qual fazia o movimento Facista, na Itália, o Nazismo, na Alemanha e, aqui, um pouco mais adiante, o integralismo.
Desde o início do atual governo que assistimos o próprio presidente e seus “militontos” flertarem com o autoritarismo no Brasil, pregarem o fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal, a intervenção nos estados da federação e outras pautas absurdas para os dias atuais, mas compatíveis com o que ocorria nos anos vinte e trinta do século passado.
O que não vemos mesmo são os protestos contra os desmandos, contra o desmonte dos instrumentos de combate à corrupção.
A situação do país só não está pior, do ponto de vista institucional porque as Forças Armadas têm resistido bravamente em aventurar-se pelos arroubos autoritários do presidente da República e do seu núcleo familiar e de aliados próximos – até quando?
Enquanto as Forças Armadas resistem, persiste o avanço sobre os outros órgãos institucionais.
Um evento ocorrido nos últimos dias aquilata bem essa situação: uma operação da Polícia Federal contra crimes supostamente cometidos pelo ministro anti-meio ambiente do Brasil, senhor Ricardo Salles, ocorreu sem o conhecimento do Ministério Público.
Sabem a razão? O Ministério Público Federal, notadamente, a Procuradoria-Geral da República, deixou de ser confiável, tornou-se um “puxadinho” dos interesses do governo.
Logo o nosso Ministério Público Federal que sempre esteve à frente das grandes causas nacionais deixou de ser “confiável” para saber, até, das operações policiais.
Isso, certamente, não vai mais ocorrer. O novo chefe da Polícia Federal, em documento ao Supremo Tribunal Federal - STF, manifesta interesse em retirar a autonomia dos delegados nos casos envolvendo autoridades.
A ideia do governo que prometeu acabar com a corrupção é que os delegados não tenham mais autonomia para investigar aquelas pessoas com foro privilegiado, a turma do andar de cima, magistrados, deputados, ministros, senadores, etc.
Entenderam que isso vai de encontro às pautas originárias de combate à corrupção?
Isso não é a chamada intervenção do governo na Polícia Federal que foi o estopim para a saída do ex-juiz Sérgio Moro do cargo de ministro da justiça do governo Bolsonaro, cargo pelo qual deixou a magistratura com a promessa de que poderia combater a corrupção com “carta branca”?
Pois é, estamos vendo que as coisas não são como prometeram que seria.
A Operação Lava Jato foi sepultada com o consórcio de todos.
O combate à corrupção tão prometida durante a campanha, simplesmente é página virada da história.
Basta dizer que o governo federal hoje é comandado pelo centrão. Aquele mesmo agrupamento que comandou a bandalha nos governos anteriores e a quem, certa vez, referiu-se o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, da seguinte forma: “se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão”.
O próprio presidente da República, não demora, será o político mais importante filiado ao centrão, para sacramentar o “casamento”. Já tem como conselheiros, Waldemar da Costa Neto (PL) e Roberto Jefferson (PTB), ambos julgados e condenados por corrupção no chamado “mensalão do PT”, com direto a sentarem-se na primeira fileira nas cerimônias do governo.
A Polícia Federal, aos pouco, vai perdendo o seu papel institucional para se tornar uma espécie de “polícia política”.
Os exemplos estão aí, outro dia tomamos conhecimento que o Ministério da Justiça solicitara abertura de inquérito policial contra o senhor Guilherme Boulos, com base na Lei de Segurança Nacional - LSN, acusando-o de ameaçar o presidente da República por ter escrito, ainda em 2019, após o senhor Bolsonaro ter dito que seria a “Constituição”, que Luís XIV, a quem se autoria da célebre frase: “L'État c'est moi", “O Estado sou eu”, teria “perdido” à cabeça guilhotina.
O ministro da justiça julgou ser uma ameaça ao presidente da República, e mandou a PF se ocupar do caso.
Talvez – como exercício mental –, tivesse sentido o tal inquérito se ignorância fosse crime, uma vez que Luís XIV, morreu de causas naturais, quem morreu na guilhotina foi o Luís XVI, o senhor Boulos supostamente teria ameaçado o senhor Bolsonaro com um fato inexistente.
Acho que tanto ele (Boulos) quanto o ministro, inventor do inquérito, poderiam retornar aos bancos das escolas de ensino fundamental para aprenderem um pouco de história.
Outro exemplo do uso absurdo da PF, foi colocá-la, também, por ordem do ministro da justiça, contra um cidadão tocantinense que teria colocado um outdoor em Palmas (TO), dizendo que o presidente não valia um “pequi roído”.
Por derradeiro, o inquérito solicitado pela FUNAI para investigar... índios.
Ora, não fosse pelo uso político, claro e intimidatório da PF contra os opositores do presidente, diria que falta o que fazer a polícia, ao governo e a todos que se ocupam ou coonestam com tais absurdos.
Isso sem contar com a perseguição sistemática contra os jornalistas e contra a liberdade de expressão.
E pior, contra a própria democracia e constituição do país.
O presidente diz que o seu governo sempre agiu (e age) dentro da Constituição.
Mas, vejamos, as ameaças aos outros poderes e até a outros estados atentam contra a Constituição.
Outro dia o presidente, na tentativa de amedrontar o senador presidente da CPI da COVID, sugeriu acabar com a Zona Franca de Manaus, onde fica sua base política.
Isso atenta contra o livre funcionamento de um dos poderes constituídos é crime previsto na própria Constituição.
Bem antes disso, o assessor de assuntos internacionais da presidência da República, foi flagrado fazendo apologia à supremacia branca, no próprio Congresso Nacional, e continua lá como se nada tivesse acontecido.
Não é preciso dizer que o Brasil rege-se pelo repúdio ao racismo. Entretanto temos um assessor da presidência “falando” para a sua turminha supremacista sem que nada lhe aconteça.
Vejam que o governo que prometeu o fim da mamata criou, ao arrepio da Constituição, o “duplo teto”, mecanismo pelo qual uma casta de servidores públicos poderão ganhar além do teto salarial estabelecido – e fez isso através de portaria.
Acredito que qualquer pessoa com um mínimo de discernimento, não tenha como deixar de responsabilizar o governo federal - e o próprio presidente da República – pelo morticínio causado por uma pandemia que já ceifou quase meio milhão de vidas.
Em qualquer outro lugar, com governantes com brio, a tragédia em si já seria um motivo para renúncia. Aqui, fogem da responsabilidade, mentem, apegam-se ao poder como uma tábua de salvação aos crimes.
Não precisaríamos de uma CPI para apurar isso, basta um pouco de memória para recordar todas as vezes que o governo sabotou o distanciamento social, as medidas de isolamento, que receitou tratamentos ineficazes, que foi negligente na compra de vacinas, etc.
Acredito que o único papel da CPI seja organizar os fatos na linha do tempo. O resto está tudo aí, até porque o presidente e seu governo continuam rescindindo nas mesmas práticas.
O único fato grave que a CPI talvez tenha para descortinar seja a comprovação de que as mortes ocorridas em Manaus, AM, por falta de oxigênio, tenha sido uma ação deliberada do governo para “testar a tal imunidade de rebanho” e o uso da receita à base cloroquina, já apontado pela comunidade científica internacional como ineficaz para a COVID.
Com tudo isso, não se pode deixar de reconhecer que o senhor Bolsonaro é um fenômeno, pois continua arregimentando para o seu lado (ou credo), uma infinidade de brasileiros, que, como disse, no texto anterior, possui instrução formal, foram as ruas contra a corrupção, a favor da transferência, da ética, etc.
Estas mesmas pessoas que não vêem que as pautas foram trocadas. Onde lia queremos democracia, agora é viva a ditadura ou “eu autorizo”; onde se lia pelo fim da mamata, leia-se: pelo duplo teto salarial; onde se lia abaixo a corrupção, leia-se: viva o centrão; onde se lia PF contra os bandidos, leia-se: PF para perseguir adversários e longe da turma do andar de cima.
Como dito anteriormente acredito, que estejamos revivendo os históricos anos vinte/trinta, com cem anos de atraso.
Abdon Marinho é advogado.