NA DEFESA DAS FORÇAS ARMADAS
Por Abdon Marinho.
HÁ DEZ ANOS, aproximadamente, em São Luís, Maranhão, ocorreu uma confusão em um dos quartéis. Se não me falha a memória, o comandante da guarnição, em um fim de tarde, “inventou” de ir jogar bola com a tropa e um dos subordinados ou “cometera falta grave” ou faltara com o respeito com o comandante. O certo é que a confusão estava feita.
Quando, ainda no calor dos acontecimentos, um amigo, que também é militar, perguntou minha opinião, se deveriam ou não punir o subordinado, respondi-lhe de forma categórica:
— Olha, independente do que tenha acontecido, o culpado é o comandante. Ele que deveria ter a responsabilidade de não se “misturar” com soldados e se alguém é merecedor de punição é o comandante e não o soldado.
Conclui citando dois ensinamentos, um do meu pai, que dizia: “a gente se junta mas não se mistura”; e outro de um grande amigo e militar das antigas, Mariano Serejo, que vez por outra costuma dizer: “Abdon, soldado é o retrato do cão”.
Ora, o comandante de tropa que vai se enfurnar numa pelada e trocar suor com os comandados, ele pode exigir tudo, menos que o tratem com respeito. Respeito na pelada? Com os boleiros?
Passados tantos anos, nunca procurei saber o que aconteceu com os envolvidos na polêmica narrada acima e se a trago novamente à baila é para tratar de um assunto muito mais sério, envolvendo a quebra de disciplina e da hierarquia nas Forças Armadas e o risco que isso significa para a democracia brasileira.
Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e comprometido com a democracia e os destinos da nação – qualquer nação –, sabe os riscos que ambos correm quando, por alguma maneira, os quartéis são politizados ou se vulnera os princípios da hierarquia e da disciplina.
A Constituição Federal, no título que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, dispensa um capítulo específico, para tratar das Forças Armadas, estabelecendo: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. … § 2º Não caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares militares”.
Como podemos perceber as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Esse é o seu papel reservado pela Constituição da República, qualquer outra atribuição que fuja de tal destinação será violar a razão de sua própria existência.
Também por determinação constitucional as Forças Armadas são instituições permanentes regulares organizadas com base na hierarquia e na disciplina.
Observem que o quesito “disciplina” é tão importante do ponto de vista da organização das Forças Armadas que legislador constituinte excluiu até mesmo o cabimento do “habeas corpus” no caso das punições disciplinares militares.
A despeito de ser a autoridade suprema das Forças Armadas, e de, portanto, ter o dever de preservá-las como instituições permanentes da nação, o presidente da República age em sentido contrário ao que deveria, levando intranquilidade e desconforto não apenas em relação a estas forças, mas, também, em relação as forças de segurança auxiliares.
Desde que assumiu, em janeiro de 2019, que tem sido assim.
Em que pese o discurso tortuoso no qual – por ter origem militar e de onde saiu em condições pouco elogiosas –, tenta fazer parecer falar em nome das Forças Armadas ou contar com seu apoio para intimidar a nação, o presidente da República, o que faz, na verdade, é corroer o prestígio da instituição perante a sociedade e corromper os princípios nas quais se fundam.
A primeira coisa que que fez ao assumir foi levar inúmeros militares da ativa ou recém-saídos da ativa para integrarem o governo, criando uma clara distinção entre os que servem no palácio e ministérios para aqueles que servem nos quartéis; depois, promovendo e/ou incentivando incontáveis manifestações inclusive nas portas dos comandos militares contra os poderes constitucionais – que as Forças Armadas têm o dever de garantir; e, por fim, fomentando a quebra de hierarquia e disciplina como assistimos no episódio envolvendo o general Pazuello.
Qualquer cidadão, desde que possua dois neurônios, é sabedor que essa encenação toda e até mesmo esse hábito de sempre visitar quartéis – que muitos julgam com um gesto de desprendimento –, nada mais é do que uma estratégia para fomentar a quebra de hierarquia nos quartéis e por extensão nas forças auxiliares.
Peguemos como exemplo a situação envolvendo o general Pazuello.
O general Pazuello foi chamado, como general da ativa – que continua até hoje –, para ser secretário-executivo do Ministério da Saúde, a justificativa foi que ele seria um “especialista” em logística – na verdade era para vigiar o ministro.
Tal fato, já causou desgaste entre os generais dos quartéis conscientes de suas responsabilidades constitucionais.
Com a “queda” do ministro titular o general acabou “virando” ministro e o responsável pela condução da pasta no momento mais agudo da crise sanitária.
Como o texto não é para tratar da pandemia deixarei de dizer que o “sucesso” da gestão pode ser aferida no número de mortos que foram contabilizados no período, para dizer que marcou sua gestão foi a emblemática declaração em relação ao presidente quando tentou comprar vacinas e foi desautorizado por ele: “é simples assim, um manda e o outro obedece”.
Tal colocação, talvez, fosse até cabível se proferida por ministro civil e apegado ao cargo. Vindo de general da ativa pareceu-me desmoralizante. Ainda mais, se considerarmos que o “especialista em logística” tentava fazer a coisa certa.
Mas o episódio Pazuello estava longe de acabar – e ainda não acabou.
Impotente e sem plano para combater a pandemia o general Pazuello acabou saindo do Ministério.
Não podemos dizer se pediu para sair ou se foi exonerado porque o presidente, no comício que fez recentemente, com o ex-ministro, mas general da ativa a tiracolo, fez parecer que ele saiu por “excesso” de competência.
E chegamos ao ponto em que o presidente lança a cartada mais visível na estratégia de desmoralização das Forças Armadas.
Provando que falava sério ao dizer que um mandava e o outro obedecia, lá estava o general Pazuello em um comício, um ato público de cunho político em apoio ao presidente.
Qualquer um, até mesmo o senhor Bolsonaro, é sabedor que militar não pode participar daquele tipo de ato. Ou seja, tanto um quanto o outro, sabiam que estava em curso a quebra da hierarquia e da disciplina militar, mas ainda assim, não se deram por achados.
Sem alternativa diante da clareza do ato de insubordinação, o comandante do Exército abriu o competente inquérito para apurar e punir o general, concluindo por não puni-lo a fim de evitar o agravamento da crise.
Acatou a ordem do presidente que segundo a imprensa em um pernoite após uma suposta inauguração de ponte de madeira de cerca de vinte metros nos confins da floresta amazônica, teria dito, sugerido ou admoestado o comandante do exército brasileiro que não gostaria que o general Pazuello fosse punido pela clara quebra de hierarquia e disciplina?
Terá sido a última concessão à quebra de hierarquia e disciplina ou daqui para frente será comum generais da ativa subirem em palanque e até fazerem política?
A decisão do Comando do Exército de não punir o general Pazuello, acatando os parcos argumentos de que mesmo não poderia recusar o convite presidencial para subir no palanque juntamente com decisão do presidente de nomear o general para outro cargo palaciano comprova, mais uma vez, o cerco político contra as Forças Armadas.
Não tenho qualquer dúvida que o presidente da República pretende a aniquilação das Forças Armadas quando estas mostraram que não seriam “alugadas” como milícia privada pelo chefe da nação e por isso fica a todo momento espezinhando os generais que respeitam a Constituição.
A inusitada situação em o comandante supremo das Forças Armadas, conforme dicção do artigo 142 da Constituição Federal, é o seu principal inimigo e trabalha, incansavelmente, para a sua destruição, reclama dos demais poderes constituídos, notadamente do Congresso Nacional, que adotem medidas urgentes no sentido de protegê-las, sob pena de ocorrer no Brasil o que ocorreu na Venezuela no período chavista.
Ora, a conclusão do Comando do Exército de não punir o general Pazuello é a prova cabal da incapacidade das Forças Armadas reagirem sozinhas ao cerco que faz seu comandante contra seu papel institucional e manterem seus pilares.
O Congresso Nacional deveria ficar atento não apenas a esta, mas as diversas outras demonstrações de indisciplinas que vêm ocorrendo nas Forças Armadas e nas forças auxiliares. Existe um movimento orquestrado por trás disso que pretende atentar contra a democracia brasileira muito mais cedo do que muitos imaginam.
O Brasil precisa que as Forças Armadas cumpram o seu papel institucional.
Abdon Marinho é advogado.