ANA E TODAS AS MULHERES.
Por Abdon Marinho.
QUANDO nossa mãe morreu no parto normal do seu décimo filho ainda na faixa dos trinta e poucos anos, eu o oitavo filho, com pouco mais de cinco anos, passei a sentir-me como “responsável” pelos meus irmãos – éramos uma “escadinha” que ia de zero a vinte e poucos anos –, por todos, mas, principalmente, pelos vieram depois de mim, minha irmã Ana, como pouco mais de dois anos, e o caçula, Wanderlan, recém-nascido.
Com a morte de mamãe deu-se uma espécie de “diáspora” na nossa família, uns irmãos morando com nosso pai, outros com os mais velhos, tios, como digo, sendo criados como o bom Deus cria batatas na beira dos rios.
Somente quarenta anos depois da morte da nossa mãe, em 2013, no aniversário de sessenta anos do meu irmão mais velho (na verdade, o segundo mais velho), tivemos a oportunidade de nos reunir-nos todos. Nunca estivemos afastados, mas nunca mais havíamos nos encontrados todos no mesmo ambiente.
Nossa mãe era “cumeeira” da casa. Sem cumeeira a casa deixa de existir.
O nosso pai, por sua própria criação e formação, não era como muitos pais da atualidade que na falta da mãe, por morte ou separação, assumem aquele papel, eram outros tempos em que era “cada um por si”.
Tempos atrás pedi a uma amiga querida que acabara de perder uma cunhada que cuidasse melhor dos sobrinhos que dos próprios filhos, pois a orfandade é a mais solitária das missões, destas em que você se sente sozinho mesmo cercado de pessoas ou como um intruso na sua própria casa.
Foi em uma missão assim, solitária, que passei a infância e juventude, não me preocupando comigo, pois sabia como estava, mas, com meus irmãos, com os mais novos, principalmente com Ana e Wanderlan. Oh, Deus, será que estão bem? Será que estão alimentados? Será que estão vestidos? Será que estão sendo maltratados?
No “peso” das angústias e preocupações sempre me causou mais inquietação a situação da minha irmã, uma criança, uma menina, sendo criada sem o apoio e/ou a supervisão de uma mãe, sem ter com quem dividir seus medos e sofrimentos.
Pelo menos no aspecto metafórico muitas vezes o meu coração sangrou.
Faço estas considerações iniciais para confessar que chorei ao ouvir os áudios horrendos do deputado paulista Arthur do Val sobre as mulheres ucranianas refugiadas de uma guerra covarde e sem sentido.
Chorei novamente ao assistir a um vídeo de uma ex-embaixatriz ucraniana onde ela expressa toda sua revolta em relação à torpeza dos áudios do já mencionado parlamentar em relação às suas compatriotas.
E, chorei novamente ao lê uma carta do jornalista Jamil Chade ao parlamentar onde narra com crueza de detalhes experiências de vida como profissional sobre as condições de mulheres, crianças e outras pessoas vulneráveis nos campos de refugiados ao redor do mundo.
A situação das refugiadas de guerras em qualquer lugar do mundo está muito longe de ser comparada a uma “fila de balada” das melhores casas do ramo no Brasil ou de qualquer outro lugar. São pessoas que, de uma hora pra outra, se viram privadas de suas famílias, dos seus amigos, de suas rotinas e de suas pátrias. São órfãs de tudo, que seguem para qualquer outro lugar em busca de um pouco de segurança.
Qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade sabe que não existe lugar pior para se estar do que no meio de uma guerra.
Agora mesmo, na guerra da Ucrânia, ouço o relato de uma médica em choque que disse ter tomado conhecimento de uma criança de oito anos que fora estuprada por diversas vezes por diversos homens. Este é apenas um recorte dentre tantos outros que uma guerra traz.
Estamos vendo crianças sendo entregues por seus pais a estranhos para que consigam fugir; outras fugindo sozinhas para países estranhos onde só poderão contar com a solidariedade das pessoas de bem.
Apesar de vivermos em um mundo conectado é muito provável que muitas destas pessoas, inclusive crianças, se percam definitivamente dos seus pais ou entes queridos – por os perderem na guerra ou por não terem mais como os encontrar.
Quando ouvi o áudio predatório e nojento do “representante do povo”, numa situação de extremo desespero para o povo ucraniano, além de vergonha, nojo e indignação por somatizar toda a situação, lembrei-me da minha própria irmã, órfã e pobre, o que na visão do parlamentar a tornaria “fácil”.
Qualquer outro “humano” lembraria também das irmãs ou filhas ou mães ou qualquer outra pessoa só sexo feminino.
Hoje minha irmã, na casa dos cinquenta, com dois filhos, uma já formada médica e o outro em formação na mesma profissão, já se ocupa de esperar a aposentadoria e pajear os netos, certamente nem deve ter ouvido ou “dado bola” para as infâmias do deputado estadual paulista sobre as mulheres ucranianas e que são extensivas a todas as outras.
Chega a ser inacreditável que em pleno século XXI ainda tenhamos que conviver com este tipo de coisa.
No mês e na semana dedicado as mulheres vimos um deputado referir-se a elas como “fácies por serem pobres”, um presidente da República que achou a fala do mencionado deputado “asquerosa” dizer que “as mulheres estão praticamente integradas à sociedade” e um procurador-geral da república “homenagear” as mulheres dizendo que as mesmas já podem escolher a cor do esmalte para pintar as unhas ou o sapato que podem calçar.
Pois é, parece que voltamos no tempo.
Assisto aos “amiguinhos” de movimento do deputado dizerem que o mesmo não deve ser cassado pelos áudios nojentos porque não roubou o dinheiro público e que vão se mobilizar contra os procedimentos que pedem sua cassação.
Uma das estratégias para “fulanizar” qualquer debate é fazer comparação de coisas distintas e colocá-las em escalas de valores. É isso que tentam fazer ou dizerem que o que o deputado disse é grave mas que é mais grave é roubar o dinheirinho do contribuinte.
Como dizia o outro, uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa.
Acho que os ladrões do dinheiro público devem ser cassados, mas isso não invalida que ocorram outras cassações antes destas ou que só cassem o deputado boçal, falastrão e vagabundo depois que cassarem o deputado ladrãozinho.
Uma coisa nada tem a ver com a outra.
Um dos Crimes mais hediondos, rentáveis, cruéis e frequentemente é tráfico de seres humanos, principalmente mulheres para a exploração sexual ou mesmo servirem como escravas. Ocorre em todo mundo e é tratado como um crime menor.
Isso ocorre sobretudo devido às condições econômicas destas pessoas.
O estereótipo do deputado de que são “fácies por que são pobres” ainda que cunhado em um papo privado de “boleiros” revela que o mesmo pode até ser outra coisa e não sofrer qualquer reprimenda na esfera cível ou penal, porém é incompatível com o decoro que deve ter um representante do povo.
Não são as palavras em si, mas sim o tipo de concepção que possui o cidadão sobre situações complexas de gravidade ímpar que revelam o seu desprezo pelas condições humanas e o seu despreparo para representar o povo.
Isso nada tem a ver com fato de ser honesto ou não.
Vejamos o presidente da República, senhor Bolsonaro, ele “veste” uma gravata rosa supostamente para homenagear as mulheres e diz que elas, a maioria da população brasileira, que “ralam” diariamente em duas ou três jornadas de trabalho, que cuidam da casa, dos filhos e até dos maridos, que estão “praticamente integradas à sociedade”.
Ora, quem estão praticamente integrados à sociedade são as minhas carpas, quando chega alguma visita aqui em casa eu as chamo para mostrar a ela; quem está praticamente integrada à sociedade é a cadela de um amigo que ele trata com mais cuidado que um humano; quem está praticamente integrada a sociedade são os gatos de uma amiga, e por aí vai.
Dizer que as mulheres estão “praticamente integradas à sociedade” é algo tão asqueroso quanto a falácia do deputado.
As mulheres são a sociedade.
Já a fala do senhor Augusto Aras, procurador-geral, que deveria procurar o que fazer, talvez lavar um tanque de roupas, são tão infantis que talvez só mereça que se diga é que ele, Aras, é uma espécie de poodle do Bolsonaro, mas com a ressalva de que está quase integrado à sociedade.
A Ana e a todas as mulheres, meu sincero respeito e apreço, pela passagem do seu dia e por todo o sempre.
Abdon Marinho é advogado.