DESISTIR NUNCA FOI OPÇÃO - Parte Um.
Por Abdon C. Marinho*.
CERTA VEZ um amigo que conhece um pouco da minha história me fez a seguinte pergunta:
— Pensastes alguma vez em desistir?
Não sei se a pergunta era um implícito pedido de socorro ou se faz parte do “roteiro” da existência dos mais jovens: pensar em desistir diante dos problemas que os afligem como opção primeira.
Mas, de pronto, respondi-lhe:
— Não. Desistir nunca foi uma opção.
Imagino, na verdade, que talvez a resposta não tenha sido a mais adequada. Talvez devesse ter dito: desistir para onde? Ou, desistir como?
Acredito que quando as pessoas pensem em desistir diante um desafio, elas simplesmente passam a ignorá-lo; voltar para casa do pai ou da mãe, da avó; ou mesmo, desistir de viver, entrando em depressão ou recorrendo a um gesto extremo, pondo fim a própria vida.
Tais coisas nunca me passaram pela cabeça: nunca tive para onde voltar.
Na minha vida sempre só existiu um caminho: seguir em frente.
Levantar cada dia e pensar em não cometer os mesmos erros dos dias anteriores – sempre temos muitos erros novos a serem explorados.
Quando a adoção de um recurso extremo, estes mesmos que nunca povoaram minha cabeça.
Até costumo dizer aos mais próximos: se algum dia aparecer morto lá por casa, investiguem. Não irei por vontade própria e nunca usaria nada que me leve a isso.
Medicamentos ou outras drogas lícitas ou ilícitas sempre procurei manter distância, exceder-me, então, nem pensar.
A indagação, entretanto, me fez refletir sobre as situações que me trouxeram até aqui.
E começamos pelo começo como deve ser.
Naquele domingo de outubro em que ocorreu minha estreia no palco da vida, estávamos sozinhos (os adultos, estavam para as fontes ou para outros afazeres). Quando minha genitora começou a sentir as “dores” e pediu a algum dos menos para ir atrás da parteira, uma tia minha, esposa de tio Antônio Calheiro, não quis esperar e fui logo tratando de vir ao mundo.
Do que lembro, quando chegou, “apenas” teve o trabalho de cortar o cordão umbilical me dar o banho do nascimento.
Já naquela operação, o nascer apressado, poderia ter “sobrado”.
Escapei e vim ao mundo bonito, alvo e gordinho. Pela tradição de colocar nomes iniciados pela letra “A”, exceção feita apenas no caso do irmão que me antecedeu, o Goça, batizado por Francisco em homenagem ao santo com mesmo nome, recebi o nome de Abdon, apelidado na primeira infância de Bida.
O nome foi uma escolha da minha madrinha, D. Nazaré, da farmácia, esposa de Absalão, que por ser muito religiosa achou esse nome na Bíblia, dentro das opções que começava com a vogal já referida.
Um ano e meio depois da estreia, no máximo dois, minha irmã Ana ainda não havia nascido, por ser gatinho, alvinho e gordinho, fui “achado” por uma tal de poliomielite. Ninguém por aquelas bandas sabia do que se tratava, nunca tinham ouvido falar nela. Como, felizmente, apenas eu fui achado pela “malvada” acredito que tenha sido pelas características acima referidas.
Certa vez, em tom de pilhéria, um amigo me disse que Deus me fizera “aleijado” para nunca me “perder de vista” – também é uma explicação.
A malvada andou perto de me levar. Dias e dias com febre, indo, não indo, passando mal enquanto a moléstia ia destruindo meu organismo, deformando meus músculos, me tornando aleijado.
Meus pais, coitados, sem qualquer instrução ou conhecimento, não sabiam o que fazer. O tratamento era a base chás, ervas, rezas, orações e promessas para São Francisco de Assis.
Uma “boca de noite”, não se sabe se por ouvir dizer que estava quase de partida ou por uma das coincidência inexplicáveis da vida, apareceu lá por casa o senhor Joaquim Rosa, que morava quase uma légua de distância da minha casa, entrando mato a dentro.
Chegando a minha casa e vendo aquele “frejo” todo em torno da minha quase anunciada partida, disse aos pais: — meu compadre, minha comadre, aqui ele não vai resistir. Devem levar o menino imediatamente para Teresina.
Assim, parti – não desta para melhor –, mas para Teresina, no Piauí, para receber atendimento médico.
Se ainda hoje é difícil andar pelas estradas do Maranhão, imaginem há mais de cinquenta anos. Não havia estradas. Minha mãe, já grávida, teria que fazer parte do percurso em lombo de animal, até um centro mais evoluído onde poderia pegar um caminhão para seguir viagem.
Arrumaram os animais, malas e faneis para comer durante o trajeto e lá se foi minha mãe rumo à Capital do Piauí, com um menino no colo, quase morto e com minha irmã na barriga.
Em Teresina, o diagnóstico da poliomielite não foi muito promissor, embora não corresse mais o risco de morrer, ficaria paralítico para sempre e, talvez, não voltasse a andar.
Foi a segunda vez que minha mãe me salvou.
Ao retornar de Teresina começou o duro aprendizado para voltar a andar. Minha mãe foi minha primeira fisioterapeuta. Gastou muito sebo de carneiro aquecido em massagens intermináveis nas pernas, além de muitas promessas para São Francisco.
Lembro de uma imensa colcha de veludo amarelo que minha mãe colocava na sala de terra batida para que pudesse voltar a engatinhar e depois voltar a andar.
Não é que deu certo. Com três ou quatro anos já estava andando novamente. Minha mãe conseguirá mais um vez.
Por esta graça alcançada tive que usar o hábito franciscano durante um bom tempo.
Engraçado que quando usava o hábito os coleguinhas do povoado ficavam provocando: — mulherzinha, mulherzinha!
Como sabemos, criança é o cão em forma de gente.
Eu, já sabendo disso, não usava nada por baixo então levantava o hábito e mostrava os “documentos”: — olha aqui quem é mulherzinha!
A “vida boa” não durou muito tempo. Logo a barra da tempestade modificaria para sempre as nossas vidas.
Foi em agosto de 1973, tinha cinco anos, minha irmã, Ana Cleide, dois e pouco, atrás de nós uma escadinha, até chegar na minha irmã mais velha, com vinte e um anos, já casada.
Minha mãe, passando dos trinta e seis anos, estava grávida mais uma vez, a décima, se retiramos das contas os diversos abortos espontâneos.
Aos treze dias daquele agosto, em tenra idade e com tantos filhos para criar, minha mãe morreu após dá à luz ao nosso caçula.
Narro o episódio no texto “Dia de Ano”, já publicado no site e nas minhas redes sociais.
Na tarde/noite do dia 12, quando já se preparava para o trabalho de parto – já estava com as primeiras dores –, falei com minha mãe pela última vez.
Engraçado que passados tantos anos (49, para ser exato), lembro de cada detalhe daquela noite/dia, do momento em que estava no quarto com ela e tio Praxedes, irmão dela e já viúvo de tia Zefa, irmã de meu pai e que morrera no parto, acho que um ano antes, ou pouco mais que isso.
Fazia peraltices, colocava o dedinho nas dobradiças de um cofre e ficava dizendo que não conseguia tirar.
Neste clima de brincadeiras, enquanto meu tio conversava com minha mãe e eu a toda hora cobrando atenção, minha mãe chamou-me para perto dela e disse: — meu filho vai ser um doutor para cuidar dos seus irmãos.
Foi a última vez que falei com minha mãe. Depois me levaram para dormir no quarto que dividia com minha vó paterna a quem chamávamos de “titia” e tinha os olhos mais azuis que jamais alguém viu.
Quando acordei na madrugada ou no raiar do dia, já foi com o barulho e o cheiro da morte tomando conta de todo o ambiente. Muito choro, muitas velas já acesas e queimando.
Minha mãe não resistira e morrera.
A minha vida, a nossa vida, já era outra, mudara para sempre. Eu perdia meu pilar, minha protetora. Eu me tornara órfão.
Além de deficiente, órfão aos cinco anos de idade.
Durante muitos anos – e ainda hoje –, me pergunto se minha mãe teria pressentido a morte ao me atribuir a responsabilidade de cuidar dos meus irmãos com apenas cinco anos ou se na verdade, ao me atribuir tal missão não estava, mais uma vez, cuidando de mim ao me obrigar a nunca desistir até cumprir a missão que fora confiada.
Lá estava eu, órfão, deficiente e com uma missão a cumprir – com cinco anos de idade.
Os anos que viriam não seriam fáceis e, principalmente, seriam bem solitários.
Abdon C. Marinho é advogado.
P.S. No próximo capítulo narraremos os primeiros anos da orfandade e como me fiz ator.
(Texto extraído do livro “Memórias e outras crônicas”, de minha autoria, que, talvez, seja publicado algum dia).