O IGARAPÉ DA MINHA ALDEIA ENCHEU.
Por Abdon C. Marinho.
MINHA amada irmã mais velha, Deiza, mandou-me, no fim de semana passado, as imagens do igarapé da minha aldeia completamente cheio, com as pessoas admiradas com o volume de água.
As imagens mandadas por ela ativaram minhas lembranças adormecidas há anos.
Pedrinhas é o igarapé da minha infância, dos meus primeiros anos no Centro Novo. Criado sozinho, como Deus cria batatas na beira do rio, lembro que ia pra lá e passava manhãs ou tardes ou dias inteiro banhando nele. Quando mais cheio, usava uma bóia de pneu velho.
Desde sempre fez parte da minha história.
Conta a lenda que quando vim ao mundo, em um dia de domingo, minha mãe deu à luz sozinha pois todos da casa estava para o igarapé, as mulheres voltadas para lavar as roupas e os demais, homens, meninos usando suas águas para a diversão. Quando a parteira chegou lá estava eu pronto para as batalhas que viriam – e não seriam poucas.
As lembranças que tenho dos meus primeiros anos são de um igarapé perene, com boa água o ano todo, usadas para tudo: dar banho nos animais, nós mesmos banharmos, lavar as roupas, pescar umas piabas, e tantas outras coisas.
As águas do Pedrinhas só não eram utilizadas para beber, para este fim, utilizávamos as águas de um poço cacimba, escavado com capricho e revestido até o fundo com tábuas de madeira; uma gangorra feita por marceneiro dedicado compunha a estrutura para a captação da água utilizada para beber e cozinhar.
Imagino que recebeu esse nome devido as pedrinhas que cobriam todo o seu leito, em tamanhos diversos e que pareciam ter sido polidas à mão.
Uma conversa de adultos entreouvida punha a imaginação em curso. Certa vez ouvi: — fulano foi preso e levado a Pedrinhas. Pensava qual o problema de ficar preso em Pedrinhas? Gosto tanto de lá. Na minha mente infantil, a única referência que tinha de Pedrinhas era a do “meu igarapé” favorito.
O igarapé corria pelas terras de meu pai, ao pé da serra onde passava os dias a passarinhar ou a procura dos ninhos – não tenho lembranças de sua nascente.
Correndo às margens da estrada por entre o capim, o Pedrinhas ganhava corpo numa espécie de várzea que ficava abaixo de um curral ao lado de casa. Era nesse local que o utilizávamos para o lazer.
Com o passar dos anos as águas foram escasseando, o igarapé deixou de ser perene – acredito que a estiagem, o desmatamento, a ocupação, tenham “matado” suas nascentes –, ainda assim, no inverno, usávamos suas águas para as brincadeiras.
Foi por esse tempo, fins dos anos setenta para oitenta, que para ter uma outra reserva de água para os animais e para o uso doméstico, que meu pai contratou umas horas de trator e fez um açude grande que recebia parte das águas do Pedrinhas no inverno.
Com o Pedrinhas seco ou com pouquíssima água mudamos as brincadeiras para o açude. Já eram meus últimos anos no Centro Novo. Dali a pouco iria para sede do município, primeiro Governador Archer, depois Gonçalves Dias e, por fim, para a capital.
Quando morava em Gonçalves Dias, vez ou outra, pegava minha “monareta” e ia até o Centro Novo atrás dos resquícios da minha infância. Passava pelo cemitério onde descansa minha mãe e tantos outros entes queridos, passava pelo Pedrinhas – ou o que fora ele –, subia a ladeira, até alcançar, às margens esquerda, o local onde ficava o nosso curral e casa onde nasci. Ambos extintos. À direita só o chão árido, batido do que fora a casa de tia Malfisia (a irmã mais velha do meu pai), a casa do Pingo e prima Ciça e, por fim a casa de Maria Bizunga.
A ladeira às margens do Pedrinhas que acessava a casa do meu pai era muito alta. Por isso mesmo o igarapé se acomodava em uma espécie de remanso entre os morros.
Era em tal ladeira que dentro de “congas” de coqueiros usávamos para escorregar até lá em baixo. A estrada até o povoado era “carroçal”, quando, uma vez na vida outra na morte, passava algum carro, era novidade para um mês inteiro.
Seguia na minha monareta, passando pela antiga casa de Batista, pelo terreno que fora o sítio do meu avô (que não cheguei a conhecer) – atrás deste terreno ficava um outro espaço caro as minhas lembranças: um pomar com diversos tipos de mangueiras; manga de mesa, manga rosa, manga esse, e tantas outras. Mais atrás ficavam as capoeiras que não conhecia.
Passava pela casa que fora de tia Chiquinha, dos primos, até chegar a casa de tio Diolindo, o tie Dió. Ficava um tempo com prima Clarice e depois me preparava para pedalar mais uma légua voltando.
Levava quase um dia inteiro em tais aventuras.
Há uns dez anos fui a Governador Archer e de lá para Gonçalves Dias revisitando minhas lembranças.
Nos anos que passei em Governador Archer, morei na Rua do Sossego, por trás da casa adquirida ou alugada para estudarmos, ficava (ou ainda fica) um campo de futebol por onde cortava caminho até a Escola Aldenora Belo, onde estudava, depois morei na casa da minha irmã Bibia, na Rua Sete de Setembro.
Já na saída lembre-me do sítio do primo Arlindo, filho de um irmão de minha mãe, eu, minha irmã Ana e suas filhas Elianai e Etnã, passávamos tardes brincado em banho do terreno.
Adiante passamos pelo pé de tamarindo onde, quando criança, com meu pai ou algum irmão mais velho, a cavalo ou de burro, parávamos para comer algum de seus frutos, se era a estação. Mais à frente à entrada do povoado Venceslau e na outra margem a entrada do Centro do Camelos. Logo depois, passando por onde outrora fora um igarapé grande e de águas turbulentas, que os burros tinham dificuldades em vencer, chegamos ao Centro Novo.
Viajava com Afrânio e o sobrinho Wallace e ia dizendo o que era cada coisa, de quem fora cada casa, o que acontecera em cada local.
Paramos no local onde ficava a casa onde nasci e nosso curral – próximo dali foi construída a casa da minha irmã que adquiriu a propriedade.
Em seguida paramos no cemitério e em seguida na casa de um primo, até vencermos aquela légua para chegar em Gonçalves Dias.
Tudo já tão diferente da minha infância.
As lembranças do que passei tornaram-se um tesouro só meu. O que passei no pomar, o que senti na serra, os risos no igarapé ou no açude, os medos que senti ao escorregar … outros até lembram, mas são outras lembranças.
Abdon C. Marinho é advogado.
O IGARAPÉ DA MINHA ALDEIA ENCHEU.
Por Abdon C. Marinho.
MINHA amada irmã mais velha, Deiza, mandou-me, no fim de semana passado, as imagens do igarapé da minha aldeia completamente cheio, com as pessoas admiradas com o volume de água.
As imagens mandadas por ela ativaram minhas lembranças adormecidas há anos.
Pedrinhas é o igarapé da minha infância, dos meus primeiros anos no Centro Novo. Criado sozinho, como Deus cria batatas na beira do rio, lembro que ia pra lá e passava manhãs ou tardes ou dias inteiro banhando nele. Quando mais cheio, usava uma bóia de pneu velho.
Desde sempre fez parte da minha história.
Conta a lenda que quando vim ao mundo, em um dia de domingo, minha mãe deu à luz sozinha pois todos da casa estava para o igarapé, as mulheres voltadas para lavar as roupas e os demais, homens, meninos usando suas águas para a diversão. Quando a parteira chegou lá estava eu pronto para as batalhas que viriam – e não seriam poucas.
As lembranças que tenho dos meus primeiros anos são de um igarapé perene, com boa água o ano todo, usadas para tudo: dar banho nos animais, nós mesmos banharmos, lavar as roupas, pescar umas piabas, e tantas outras coisas.
As águas do Pedrinhas só não eram utilizadas para beber, para este fim, utilizávamos as águas de um poço cacimba, escavado com capricho e revestido até o fundo com tábuas de madeira; uma gangorra feita por marceneiro dedicado compunha a estrutura para a captação da água utilizada para beber e cozinhar.
Imagino que recebeu esse nome devido as pedrinhas que cobriam todo o seu leito, em tamanhos diversos e que pareciam ter sido polidas à mão.
Uma conversa de adultos entreouvida punha a imaginação em curso. Certa vez ouvi: — fulano foi preso e levado a Pedrinhas. Pensava qual o problema de ficar preso em Pedrinhas? Gosto tanto de lá. Na minha mente infantil, a única referência que tinha de Pedrinhas era a do “meu igarapé” favorito.
O igarapé corria pelas terras de meu pai, ao pé da serra onde passava os dias a passarinhar ou a procura dos ninhos – não tenho lembranças de sua nascente.
Correndo às margens da estrada por entre o capim, o Pedrinhas ganhava corpo numa espécie de várzea que ficava abaixo de um curral ao lado de casa. Era nesse local que o utilizávamos para o lazer.
Com o passar dos anos as águas foram escasseando, o igarapé deixou de ser perene – acredito que a estiagem, o desmatamento, a ocupação, tenham “matado” suas nascentes –, ainda assim, no inverno, usávamos suas águas para as brincadeiras.
Foi por esse tempo, fins dos anos setenta para oitenta, que para ter uma outra reserva de água para os animais e para o uso doméstico, que meu pai contratou umas horas de trator e fez um açude grande que recebia parte das águas do Pedrinhas no inverno.
Com o Pedrinhas seco ou com pouquíssima água mudamos as brincadeiras para o açude. Já eram meus últimos anos no Centro Novo. Dali a pouco iria para sede do município, primeiro Governador Archer, depois Gonçalves Dias e, por fim, para a capital.
Quando morava em Gonçalves Dias, vez ou outra, pegava minha “monareta” e ia até o Centro Novo atrás dos resquícios da minha infância. Passava pelo cemitério onde descansa minha mãe e tantos outros entes queridos, passava pelo Pedrinhas – ou o que fora ele –, subia a ladeira, até alcançar, às margens esquerda, o local onde ficava o nosso curral e casa onde nasci. Ambos extintos. À direita só o chão árido, batido do que fora a casa de tia Malfisia (a irmã mais velha do meu pai), a casa do Pingo e prima Ciça e, por fim a casa de Maria Bizunga.
A ladeira às margens do Pedrinhas que acessava a casa do meu pai era muito alta. Por isso mesmo o igarapé se acomodava em uma espécie de remanso entre os morros.
Era em tal ladeira que dentro de “congas” de coqueiros usávamos para escorregar até lá em baixo. A estrada até o povoado era “carroçal”, quando, uma vez na vida outra na morte, passava algum carro, era novidade para um mês inteiro.
Seguia na minha monareta, passando pela antiga casa de Batista, pelo terreno que fora o sítio do meu avô (que não cheguei a conhecer) – atrás deste terreno ficava um outro espaço caro as minhas lembranças: um pomar com diversos tipos de mangueiras; manga de mesa, manga rosa, manga esse, e tantas outras. Mais atrás ficavam as capoeiras que não conhecia.
Passava pela casa que fora de tia Chiquinha, dos primos, até chegar a casa de tio Diolindo, o tie Dió. Ficava um tempo com prima Clarice e depois me preparava para pedalar mais uma légua voltando.
Levava quase um dia inteiro em tais aventuras.
Há uns dez anos fui a Governador Archer e de lá para Gonçalves Dias revisitando minhas lembranças.
Nos anos que passei em Governador Archer, morei na Rua do Sossego, por trás da casa adquirida ou alugada para estudarmos, ficava (ou ainda fica) um campo de futebol por onde cortava caminho até a Escola Aldenora Belo, onde estudava, depois morei na casa da minha irmã Bibia, na Rua Sete de Setembro.
Já na saída lembre-me do sítio do primo Arlindo, filho de um irmão de minha mãe, eu, minha irmã Ana e suas filhas Elianai e Etnã, passávamos tardes brincado em banho do terreno.
Adiante passamos pelo pé de tamarindo onde, quando criança, com meu pai ou algum irmão mais velho, a cavalo ou de burro, parávamos para comer algum de seus frutos, se era a estação. Mais à frente à entrada do povoado Venceslau e na outra margem a entrada do Centro do Camelos. Logo depois, passando por onde outrora fora um igarapé grande e de águas turbulentas, que os burros tinham dificuldades em vencer, chegamos ao Centro Novo.
Viajava com Afrânio e o sobrinho Wallace e ia dizendo o que era cada coisa, de quem fora cada casa, o que acontecera em cada local.
Paramos no local onde ficava a casa onde nasci e nosso curral – próximo dali foi construída a casa da minha irmã que adquiriu a propriedade.
Em seguida paramos no cemitério e em seguida na casa de um primo, até vencermos aquela légua para chegar em Gonçalves Dias.
Tudo já tão diferente da minha infância.
As lembranças do que passei tornaram-se um tesouro só meu. O que passei no pomar, o que senti na serra, os risos no igarapé ou no açude, os medos que senti ao escorregar … outros até lembram, mas são outras lembranças.
Abdon C. Marinho é advogado.