BREVÍSSIMO ENSAIO SOBRE A LIBERDADE DE SE EXPRESSAR.
Por Abdon C. Marinho*.
SEMPRE que escrevo algum texto mais inciso sobre a política local recebo do querido amigo Marcony Farias, ex-deputado estadual e um grande contador de causos, um “meme” de uma frase célebre de autor que desconheço: “semeia a verdade e colha inimigos”.
Tal frase/meme, aliás, deseduca aquilo que aprendemos nas aulas de catecismo, pois consta da Bíblia cristã: “Aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6:7) ou, em II Coríntios, 9:6, que diz: “E isto afirmo: aquele que semeia pouco pouco também ceifará, e o que semeia com fartura com abundância também ceifará”. Essa é a lei da semeadura bíblica: quem semear o bem colherá o bem; quem semear o mal colherá o mal; quem semear pouco colherá pouco; quem semear muito, muito irá colher.
Já com meu pai, homem simples de Angicos, RN, analfabeto por parte de pai, mãe e parteira, e, por isso mesmo, sem ser letrado ou conhecedor da escrituras sagradas, dizia com incomum sinceridade: “aquilo que está errado é da conta de todo mundo”.
Fazia tal afirmação no intuito de nos ensinar que aquilo que encontrávamos de errado por onde passávamos deveríamos consertar ou corrigi, impedir que algo pior viesse ocorrer em virtude da nossa omissão; ou, se não nos cabia corrigir que tomássemos a iniciativa de alertar aqueles que poderiam corrigir tal falha.
E, citava como exemplo, imagine que você passe por uma das nossas “quintas” (era assim que chamávamos as divisões da propriedade, onde colocávamos os animais) e encontre uma cerca rompida, você deve procurar corrigir ou chamar quem possa fazê-lo, de sorte a impedir que os animais fujam ou adentre as roças dos vizinhos e destruam o seu sustento de um ano inteiro, dizia.
Órfão desde muito cedo – de mãe aos cinco e de pai com pouco mais de vinte –, aprendi a respeitar os ensinamentos dos meus pais e a tê-los como dogmas, regras a serem seguidas. Por vezes imagino que se fossem vivos talvez não respeitassem tanto os ensinamentos que recebi como os respeito na ausência.
O certo é que me causa profundo incômodo testemunhar algo que sei errado ou com o qual discordo e ficar calado, fingir que não vi ou, cinicamente, aplaudir.
Essa inquietação deixa os amigos preocupados, sobretudo, aqueles que me estimam e querem o meu bem ou que seja reconhecido por fazer algo de útil para a sociedade e não como “inimigo público número um” das autoridades.
Com tristeza, sou forçado a reconhecer que a preocupação dos amigos tem uma razão de ser e são pertinentes, pois vivemos tempos em que qualquer um que detenha um fragmento de poder, por menor que seja, investe-se nos poderes absolutistas de Luis XIV, como se fossem a própria encarnação do Estado: “L’État c’est moi”, O Estado sou eu, na frase atribuída ao rei Luís XIV (1638-1715).
Ao refletir sobre tal quadra política, ficamos com a impressão de que o tempo, no aspecto da intolerância, da falta de respeito a opinião de divergente, caminhou em sentido contrário, como se tivéssemos retornado para a Idade Média, ou para outro período da história, de tristes registros em que as pessoas eram punidas, exiladas, queimadas em praça pública pelo crime de discordar.
Mas, vejam, estamos em pleno século XXI, com as diversas tecnologias ao alcance de todos, com a ciência prolongando vidas, curando doenças, permitindo que o conhecimento seja amplo, total e irrestrito.
Apesar disso, é como se estivéssemos vivendo numa espécie de pensamento único em que qualquer um pode sofrer as consequências por discordar. Pior que isso, são tempos de pessoas sensíveis ao extremo, tudo as “melindram”; e personalísticas, pois tudo que se diga ou se opine, mesmo uma coisa singela, “elas” levam para o lado pessoal.
Outro dia parei para ler o artigo de um articulista local, pessoa que prima por sua imortal reputação. O que mais me chamou a atenção no texto do intestinal de renome não foi o conteúdo – com o qual concordo em grande parte –, mas, sim, o exercício que fez seu autor “desculpando” por dizer coisas tão óbvias.
Imagino que nem durante o regime de exceção, a longa noite da ditadura militar que durou vinte e anos, algo semelhante acontecia.
O texto do intelectual, assim me pareceu, foi posto como a “prova viva” do que pretendia expressar, ou seja, os males que podem causar as democracias, os poderes hegemônicos. O missivista, com “mil e um pedido de desculpas” diretos, indiretos e/ou subliminares no texto, comprovava tais males ou, talvez, o pior deles, o fato de ter que desculpar-se por expor uma simples ideia.
O MARANHÃO, terra de intelectuais como Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Arthur Azevedo, Gomes Castro, Coelho Neto, Silva Maia, Maria Firmina, Josué Montello e tantos outros, em pleno século XXI, repito, produz intelectuais com medo de expor o seu … intelecto.
Esse mesmo estado, berço de tantos juristas ilustres – que me privo de nominar para não correr o risco de ser injusto –, ao longo da história e que mesmo na atual quadra possui nomes de grande relevo na advocacia, inclusive, alguns deles com assento parlamentar e gozando das imunidades constitucionais, não conta com ninguém para fazer o “distingue” entre o certo e o errado e que se expressem de forma clara e contundente sobre os temas de interesse de todos.
Não consigo me conformar quando vejo advogados, sobretudo, bons advogados, talvez os melhores de uma geração “fingindo” que não conhecem a Constituição ou, numa análise ainda pior, conhecendo-a, como sabemos que a conhecem, aquiescerem em interpretações tortuosas que não têm qualquer outra significado que não seja a burla ao desejo estatuído pelo constituinte originário.
No ano passado, em concorrida solenidade pelo 209 anos do Tribunal de Justiça do Maranhão, viu-se homenageados e “medalhados” repetirem como se um mantra fosse, a célebre frase de Rui Barbosa: “fora da lei não h’a salvação”. Mas, o que é a lei para tantos que ignoram as regras legais, o sentido das normas, o espírito da ética ou do decoro? O que é a norma diante de um silêncio tão ensurdecedor?
O escritor e jornalista pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980) dizia que toda unanimidade era burra. Antes de receber tal frase como crítica ou agressão dever-se-ia buscar o contexto histórico do seu significado. A divergência não é ofensa, tem, principalmente, o condão de trazer a lume um olhar diferente sobre aquilo que para os demais parece óbvio.
Na anedota o “rei nu”, foi preciso que a inocência de uma criança fizesse a revelação daquilo que à vista de todos ninguém queria enxerga, até o brado da criança no meio da multidão: — o rei está nu! Todo sabiam, todos estavam vendo. A conveniência, o medo, a covardia calava todos. A ninguém interessava dizer o estava óbvio: que o rei desfilava nu.
No apogeu Romano o Senado designava alguém para repetir no ouvido dos imperadores quando estes saiam nos seus desfiles de vitória: “és apenas um homem”, “és mortal”, ou sentenças semelhantes. Tudo isso para que o poderoso de plantão não perdesse a consciência sobre a efemeridade do triunfo.
Ditosa Roma que possuía tal costume. Quem dera por aqui os poderosos também entendessem que razão para ocuparem o poder é bem servir ao próximo deixando legado as futuras gerações pois é isso, efetivamente, apenas isso, que fará a diferença para vida das pessoas e que contará no julgamento da história. O resto não é nada. Somos apenas homens; somos mortais; logo mais seremos pó.
A compreensão sobre a finitude da qual nenhum se livrará deveria nortear a ideia – que já foi muito presente no passado –, que mesmo aqueles que à míngua de nada terem a deixarem para as gerações futuras se preocupavam em deixarem um bom exemplo.
Abdon C. Marinho é advogado.