INDIGNAÇÃO SELETIVA.
O roteiro já não surpreende mais. Basta algum bacana ser convidado a prestar contas com a justiça que uma série de pessoas saem da toca para virem alegar estado de exceção promovido pela autoridade judiciária, toda sorte de abusos por parte da polícia, violações à ordem constitucional e processual, e por aí vai.
O processo da chamada "Operação Lava Jato" está repleta deste tipo de argumentação. O que mais leio, ouço, são colegas advogados, são políticos, são representantes de movimentos sociais reclamando que juiz que conduz o processo, senhor Moro, é um déspota, que constrange e viola as garantias constitucionais dos implicados. Estranhamente, os que mais reclamam no momento, são os mesmos que sempre bradaram a vida inteira contra a impunidade.
Agora enxergam violações e abusos em tudo.
O esquema descoberto na investigação em curso, saqueou em bilhões e bilhões de reais, levou a maior empresa brasileira ao vexame internacional de ter suas ações valendo um ínfimo percentual do que vale suas congêneres nas bolsas de valores onde são negociadas, e a ter seus acionistas cobrando nas cortes de justiça ao redor do mundo as perdas que tiveram como custo da corrupção.
As ações judiciais já intentadas cobram bilhões da empresa brasileira por culpa dos esquemas montados por líderes políticos da base de apoio do governo e com a aquiescências das maiores autoridades da República, conforme se extrai dos depoimentos obtidos em acordos de colaboração premiada.
Apesar de tudo isso, ganha ares de escândalo falar-se em ouvir o ex-presidente Lula ou que se investigue sua sucessora, como se estas pessoas estivessem acima da lei.
A mesma lei que juraram defender.
Longe de mim defender qualquer arbítrio, qualquer ilegalidade. Acontece, que as prisões dos bacanas que são deferidas agora – com um atraso secular – são as mesmas deferidas aos pobres, aos despossuídos e nunca vi nenhum discurso veemente de indignação dos muitos que protestam hoje com incomum veemência.
Quantas homens, mulheres não foram jogados a infectos cárceres por roubarem um ponte de manteiga, uma lata de leite, uma sardinha para alimentar os filhos? Quantos não foram condenados sem que lhe valessem quaisquer embargos dos valentes defensores da justiça? Se vimos alguém defendendo a ilegalidade de suas prisões, a injustiça de suas condenações, estes foram bem poucos.
A lei deve valer para todos, devemos buscar a imparcialidade e igualdade da justiça para todos os cidadãos. Se é para soltar o bacana que não teve o mandado de prisão devidamente fundamentado com todas as vírgulas e exclamações, que se façam o mesmo com os mandados que recolheu a cárcere o ladrãozinho de galinha, ou com a moça que roubou uma lata de leite para alimentar os filhos.
Toda injustiça é reprovável e deve ser rejeitada pelos cidadãos de bem. Porém, mais reprovável ainda é a indignação seletiva. Aquela que só se manifesta quando o que sofre a reprimenda da lei não é o que rouba em um barco e sim aquele que usa uma armada em seu intento criminoso.
O cidadão que furtou o pote de manteiga fê-lo diante do risco do ofício. Aquele que recebeu as malas de propinas nos hotéis luxuosos fê-lo ciente da impunidade. O primeiro temia ser apanhado pela polícia. O segundo usou a polícia para proteger a a atividade criminosa. Aquele levou prejuízo ao dono do supermercado. Este, o bacana, negou educação, saúde, segurança, assistência a toda uma sociedade. Aquele causou um dano de tostão. Este de milhões, provocou analfabetismo, matou, causou sofrimentos a famílias inteiras.
A primeira mudança que deveria ocorrer no Brasil seria fazer a lei valer para todos. Seria a augura do rico, preso por roubar bilhões, causar a mesma indignação que causa a augura do pobre que roubou tostões.
Não são apenas os ricos que têm o direito à investigações bem feitas, mandados bem fundamentados, garantias e prerrogativas respeitadas. São todos os cidadãos. Todos têm (ao menos deveriam ter) o direito à igualdade perante a lei. Tal garantia não se encontra escondida em um inciso qualquer da Carta Constitucional, pelo contrário, está na cabeça do artigo (5°) que trata dos direitos e deveres individuais e coletivo, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais.
O grande passo para a consolidação da democracia é o respeito ao inteiro teor do artigo "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:..."
Quando nos batemos contra a violência cometida contra os direitos dos ricos, dos bem nascidos, dos potentados, dos que roubaram em armadas e escudados nos poderes do Estado e nos calamos ante o infortúnio dos desvalidos, quando nos quedamos à indignação seletiva, não estamos defendendo direito algum, respeito à lei alguma, a Constituição nenhuma, estamos apenas sendo hipócritas.
Abdon Marinho é advogado.