A deserção americana e a falta que Churchill faz.
Por Abdon C. Marinho.
QUANDO criança, logo após ser alfabetizado, lia muito. Estava sempre com um livro ou uma revista na cara lendo. Lia tanto que os mais velhos diziam que acabaria cego por “gastar” tanto a vista com leituras. Havia até um certo incômodo com esse meu hábito. Não raro lia escondido para fugir das chateações. Aquilo que hoje os pais mais preocupados dizem aos filhos: — menino, larga esse celular! Diziam a mim em relação aos livros.
Foi por essa época que “conheci” o termo desertor. Nos livros de histórias de guerras ou de conquistas, o termo tinha um sentido ímpar de gravidade. Alguém sobre que, recaia tal acusação, se descoberto poderia ser morto; se preso iria à corte marcial podendo ser condenado à morte por crimes de guerra.
Hoje, imagino que não seja mais assim. Mesmo no Código Penal Militar a pena por deserção é até branda. Acredito que só em caso de guerra externa, conforme prevista na Constituição, seja admitida a pena de morte – mas nem por isso.
Pois bem, faço tal introdução para adentrar ao verdadeiro tema.
Em texto anterior afirmei de forma bem clara que o comportamento do governo americano em relação à guerra na Ucrânia era uma desonra – continuo afirmando isso.
O clima de polarização política que sacode o mundo fez com que muitos me criticassem por tal afirmação. Mas, como disse, isso se deve ao clima de polarização política. Esse clima é tão danoso que as pessoas partidarizadas não conseguem enxergar o óbvio. Se fulano é da minha facção política ainda que mate alguém sem motivo a culpa jamais será dele mas sim do morto.
A desonra da Casa Branca em relação ao que se passa na Ucrânia é que ela passou a culpar a vítima pela guerra. Ao dizer que a Ucrânia não quer a paz e joga com a escalada do conflito ignora que a Ucrânia é uma nação soberana que foi invadida por outra nação sem qualquer justificativa plausível ou válida.
Não é possível falar em paz sem se partir do pressuposto que as fronteiras nacionais precisam – e devem – ser respeitadas.
Abro um parêntese apenas para registrar a curiosa situação dos “faccionados” brasileiros: tatos os ditos de direita quanto os ditos de esquerda, estão, envergonhados ou não, apoiando a invasão russa. Só para registrar que no fundo não diferem muito uns dos outros.
Falar que a vítima é responsável pela guerra equivale dizer que você, cidadão comum, é responsável ou “culpado” por reagir contra outrem que invade sua casa, começa a destruir seu mobiliário e a matar seus parentes.
No patético “barraco” ocorrido na Casa Branca e que motivou aquele texto foi isso que os americanos disseram, pelas bocas dos seus dirigentes (presidente e vice-presidente).
E foram além. Com a desculpa de que a vítima não quer a paz ou seja, se deixar matar dentro de casa, informaram a suspensão da ajuda que prestam aquele país no esforço de guerra.
E, pode ser pior, querem cobrar dez vezes mais aquilo que já aportaram no conflito.
O meu entendimento – e não peço escusas aos que discordam –, é que sobra ambição e falta caráter aos governantes americanos.
Em se mantendo a suspensão de ajuda a Ucrânia em guerra entendo que o termo mais adequado em relação aos americanos é desertores.
Essa suspensão, quando se sabe da dependência militar da Ucrânia em relação aos EUA, significa, na verdade, uma mudança de lado, um alinhamento ao país invasor.
Essa deserção não é uma retórica política ou um arroubo. No documento que junto ao presente texto (apenas a versão em inglês), consta que os Estados Unidos da America se comprometeram a garantir a segurança da Ucrânia e a garantir a sua soberania e integridade territorial, estabelecidas e reconhecidas no ano de 1994.
O documento, chamado de Memorando de Budapeste, tem o compromisso do governo americano, do Reino Unido e da Rússia em respeitarem as fronteiras, não promovem violação territorial ou coesão econômica contra aquele país.
Não sei se é porque estou ficando velho – sou do tempo em que compromissos se honrava apenas com a palavra –, que acho que os americanos não têm o direito de ignorarem um compromisso de governo e abandonar um país em guerra. Na minha rede social até disse que o governo ucraniano poderia (deveria) acionar a Justiça Federal Americana cobrando o cumprimento do contrato de 1994. As assinaturas de Bill Clinton em todas as versões do documento é a comprovação mais que necessária para que os americanos sejam compelidos a honrarem a palavra dada e o acordo assinado. Tal acordo obriga qualquer governo, com um mínimo de decência, a honrar. Tratou-se de compromisso do país.
Noutra quadra, a própria Europa já deve está sentindo na “pele” o equívoco de ter deixado sua segurança em mãos americanas com base em compromissos que remontam ao término da Segunda Guerra Mundial.
A Ucrânia paga o preço (alto) por ter confiado que bastaria um contrato assinado por todas as grandes potências mundiais para ter assegurado sua independência, soberania e respeito aos seus limites territoriais ajustados. Se tivesse mantido sua capacidade bélica intacta, inclusive com armas nucleares, certamente não estaria tão vulnerável como se encontra hoje.
Confiou na Rússia, confiou nos EUA, confiou no Reino Unido… agora sofre as consequências enquanto os dois primeiros “tramam” para saber quem fica com maior fatia do butim.
Há trinta anos, por ocasião desse acordo, alguém me alertou da grande tolice que estava cometendo tanto a Ucrânia quando os demais países que aceitaram entregar suas armas para a Rússia.
A Europa também se ressente do fato de não possuir nenhuma liderança com a estatura de Winston Churchill, que, em determinado período durante a Segunda Guerra Mundial, a sustentou praticamente sozinha. A sua fortaleza de caráter e de princípios impediu que assinasse acordos e pactos com os nazistas.
Embora se trate de uma obra de ficção, o filme “O Destino de Uma Nação”, acho, que de 2018, retrata muito bem a importância de Churchill para o destino daquela guerra
Esse vazio de liderança faz com que a Europa não consiga reagir de forma rápida e uniforme a qualquer hostilidade ou das besteiras que se profere desse lado do atlântico dia sim e no outro também.
Finalmente parece ter entendido que a segurança de cada um daqueles países não pode mais ficar longe do seu próprio controle.
Para a desgraça do mundo e das futuras gerações, teremos que conviver ainda durante muito tempo – ao invés de nos preocuparmos com a salvação do planeta –, com o axioma: queres paz, estejas preparado para a guerra.
É uma lástima, mas, infelizmente m é o que nos resta.
Abdon Marinho é advogado.
P.S. Segue abaixo a versão inglesa do Memorando de Budapeste assinado em 5 de dezembro de 1994.