O Centro Novo - Parte I.
Por Abdon C. Marinho.
QUANDO as manhãs são chuvosas – como essa –, assaltam-me a mente as lembranças do Centro Novo, minha aldeia, meu torrão natal, o lugar onde meu umbigo foi enterrado para todo o sempre e por onde vagam os dentes de leite jogados enquanto se proferiam as palavras mágicas: “Tião, Tião, pega seu dente podre e me dê um são”. Isso ou algo bem parecido.
Não sei o motivo das manhãs chuvosas me remeterem a tais lembranças, talvez, como dito, por ser o lugar das minhas primeiras memórias.
Nasci no Centro Novo em uma manhã ensolarada de domingo. Contava apenas com a presença de minha mãe, todas as demais pessoas da casa haviam ido ao Igarapé de Pedrinhas ou para o banho ou para lavar as roupas que seriam usadas durante a semana.
Conforme já disse em outras oportunidades, estávamos apenas nós dois – eu e minha mãe –, em casa. Eu, por óbvio, ainda dentro dela. Não mais que de repente sentiu as dores do parto, o oitavo, até ali e, antes que ela conseguisse chamar por alguém para que fosse atrás da parteira da família, tia Ferreira, esposa de tio Antônio, irmão mais velho de meu pai, eu “estreava” no Centro Novo e de lá para o mundo.
O Centro Novo foi o lugar escolhido para a “assentada” dos meus avós, seus filhos, filhas, noras, genros, já alguns netos, e outros parentes vindos na caravana do Rio Grande do Norte para o Maranhão.
Foi o tio Pedro, o caçula dos filhos de meu avô que fez a escolha do lugar. Um ou dois anos antes viera como “expedicionário” atrás de um lugar para acomodar a família que já não tinha como suportar a inclemência da seca do sertão nordestino. Não tive a oportunidade de perguntar-lhe como foi que chegou aquela decisão.
Durante os primeiros anos o Centro Novo foi o universo dos retirantes nordestinos que tinham no lugar a razão de suas existências. Com a passagem do meu avô, em 1965, tio Pedro e tio Chiquinho, com os seus, mudaram-se para Pedreiras. Lá recebiam os sobrinhos que os procuravam para obterem um estudo um pouco mais avançado. Naquela época Pedreiras era a “capital do Mearim” e uma das cidades mais importantes do estado.
Vivi no Centro Novo os primeiros oito anos da minha vida – e as lembranças para um vida inteira. Foi lá que “estreie”; foi lá que com um ano de existência (ou pouco mais) tive poliomielite; foi lá que perdi minha mãe – e também diversos outros parentes, meu avô, tia Zulima, tia Zefa, minha mãe, minha avó … tantos outros.
A minha Macondo era um povoado de uma só rua entre os municípios de Governador Archer e Gonçalves Dias que quando surgiu eram também povoados desenvolvidos de outros municípios: Codó e Caxias.
Na minha infância considerava como limites do povoado, a estradinha que dava acesso ao Centro dos Rosas, do lado de Gonçalves Dias; e a entrada para o Povoado Venceslau ou Centro dos Camelos, pelo lado de Governador Archer.
Era esse o meu universo, os limites que poderia frequentar após reaprender a andar. A nossa casa ficava em um elevado aos pés de uma serra a meia distância dos dois pontos extremos do Centro Novo. Abaixo de casa e à beira da estrada corria o igarapé de Pedrinhas; feita em pau a pique, possuía, além da parte residencial, uns depósitos anexos todos com assoalho em madeira utilizados por meu pai para guardar o arroz que comprava “na folha” para revender depois, quando o preço estivesse bom.
Com a produtividade em alta, tanto de suas roças, quanto das compras que fazia, mandara fazer um outro depósito maior na frente de casa no outro lado da estrada, para armazenar o arroz.
Quando era tempo de colheita, ainda muito criança, cinco, seis anos, acompanhava meu pai, montado em cangalha de burros, pelas veredas, até as roças dos que venderam o arroz na folha para buscar as sacas de arroz. Chegando lá, enchíamos as sacas de estopa, costurávamos as “bocas” com barbante e agulhas, colocávamos uma saca de cada lado dos burros e voltávamos para casa onde pesávamos o arroz e colocávamos no depósito; pelas veredas lá iam diversos burros carregados de arroz, meu pai, meus irmãos mais velhos cada em um burro, as vezes puxando outros conduzindo o comboio. Não raro um burro “desembestava” com a carga ou atolava e o serviço dobrava.
No fim dia, pelas 16 horas, íamos “tratar” os animais, que consistia levá-los para o banho no igarapé ou no poço e depois alimentá-los com milho e/ou outras misturas para prepará-los para a lida do dia seguinte.
Como já dito, meu pai também tinha suas próprias roças onde cultivava, arroz, feijão, milho, abóbora, macaxeira, melancia, quiabo, maxixe e tudo mais que utilizamos para nos alimentar e alimentar os burros, vacas, porcos, galinhas, etc. A mão de obra era do meu pai e dos meus irmãos, exceto vez ou outra quando o trabalho apertava e havia necessidade de se pagar alguma diária. Eu, por conta da pólio, participava levando vez ou outra a refeição na roça ou uma cabaça com água fresca para eles.
Nos tempos de safra, aos fins de tarde, estendia-se uns encerados e todos se ocupavam da debulha do milho ou do feijão. A debulha era um momento de lazer, até o horário de ir dormir se ficava naquele trabalho enquanto se conversava ou se contavam causos. O arroz para o consumo, quando não pilado no pilão era levado para alguma usina, mas isso era exceção.
Vez ou outra aparecia pelo Centro Novo um ou outro “repentista” para quebrar a rotina.
Quase em frente a nossa casa, à direita, ficava a casa de tia Malfísia, a irmã mais velha de meu pai e sua conselheira, já a conheci viúva, morava com uma das filhas, Salete, e a neta, Fátima; ao lado de sua casa morava a outra filha, Cícera (Ciça) casada com Pingo e suas filhas, Tazinha e Neguinha; e já próximo ao depósito de papai, a Família Bizunga, que não sei se tinha algum parentesco conosco (acredito que não).
Quase em frente, mas à esquerda de nossa casa ficava a casa de Batista, um contraparente que também viera do Rio Grande do Norte e mais à frente, o terreno onde ficara a casa do meu avô. Aos fundo desse terreno havia um enorme pomar com mangas de diversas espécies (manga rosa, espada, mesa, fiapo, massa …) sob a sombra do arvoredo, nos dias livres, fazíamos diversas brincadeiras.
Esses foram os primeiros anos no centro do universo de uma criança.
Abdon C. Marinho é advogado.