A URNA, A DEMOCRACIA E O GOLPE.
Por Abdon Marinho.
AO DEIXAR o hospital onde esteve internado para tratar de uma obstrução no intestino o presidente da República, senhor Bolsonaro, declarou que “Eu já disse, só Deus me tira daquela cadeira” e disse, ainda, “Não existe eleições sem transparência, isso é fraude. Não queremos isso”.
Sempre acho complicado quando, em qualquer discussão, metem o nome Deus.
Primeiro, que o Altíssimo não pode vir a público desdizer o dito ou dizer: – alto lá! Me inclua fora dessa.
Segundo, que dando-se uma coisa ou outra, ambas podem parar na conta d’Ele.
A Constituição Federal, segundo consta no seu preâmbulo, foi promulgada sob a proteção de Deus, o que nos leva a crer que o seu conteúdo é inspiração “divina”.
Pois bem, a Constituição, como sabemos, estabelece eleições regulares a cada quatro anos, quando os eleitores, de forma livre e soberana, escolhem quem vai sentar “naquela” e nas outras cadeiras.
A Constituição, também, estabelece causas de cassação de mandatos por crimes de responsabilidades daqueles que foram eleitos para sentarem naquela cadeira.
Logo, tanto a regularidade eleitoral quadrienal quanto a possibilidade de impedimento do presidente da República são situações normais dentro democracia e até possuem inspiração divina.
Apesar disso, é oportuno que deixemos o santo nome de Deus para tratarmos de assuntos mais terrenos, mesmo porque, conforme consta dos Mandamentos que Ele, pessoalmente, entregou a Moisés: “Não pronunciarás em vão o nome de Javé, o Senhor teu Deus”.
O certo é que um pequeno grupo no entorno presidente – e ele próprio –, totalmente desconectados da realidade do país e do mundo, sonham e trabalham com a possibilidade da implantação de uma “nova” ditadura no país.
Há mais de um ano já alertava para a estratégia do atual governo querer “melar"a democracia brasileira.
No texto “Bolsonaro ensaia para o Impeachment ou para o golpe”, de maio de 2020, tratei do assunto.
Este ano, temos assistido a soluços golpistas de alguns esbirros da ditadura que resolveram se manifestar depois de 36 anos de normalidade democrática.
Não é papel das Forças Armadas intervirem em assuntos políticos, devendo se reservarem à defesa da pátria e da integridade do território nacional.
A democracia brasileira não é compatível com tutela militar.
Já passa da hora dessa minoria golpista acordarem para a realidade de que o mundo mudou, não vivemos mais nos anos sessenta e que não é possível impor uma ditadura a 211 milhões de brasileiros.
Em um governo onde a maluquice parece ter contaminado até setores das Forças Armadas uma voz lúcida que se ouviu foi a do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, que é egresso das Forças Armadas, ao dizer que essas ideias malucas de “melarem” as eleições não têm cabimento e que Brasil não é uma “república de bananas”.
A desculpa para os golpistas “melarem” a democracia brasileira é que, segundo eles, o sistema eleitoral existente no país há 25 anos e que todos que estão no exercício de mandados passaram por ele, é “fraudulento”.
Dizem isso com o maior descaramento, sem apresentarem um fiapo de provas e sem se darem conta que envergonham a nação aos olhos do mundo.
Ao meu sentir, a primeira medida destas pessoas que sustentam a existência de fraudes nas urnas eletrônicas e que foram eleitas em eleições que as utilizaram seria renunciar aos mandatos.
Conheço a história das eleições no Brasil.
Desde os tempos de eu menino, lá por 1982, já estava acompanhando de perto os processos eleitorais.
Conheço as histórias de fraude através de “voto carretilha”, do chamado “mapismo”, e tantos outros.
A minha monografia, quando formei em direito na Universidade Federal do Maranhão - UFMA, abordou, em parte, esse assunto, fazendo uma linha do tempo desde as primeiras eleições ocorridas no país até aquelas de 1996, quando conclui o curso.
Narrativas de fraudes eleitorais conheço muitas.
No Maranhão, praticamente, desde a folclórica história da “41ª Zona de Zé meu filho”.
É diante disso que tenho por certo que a implantação da urna eletrônica reduziu as fraudes eleitorais.
Na verdade, mudou-se a natureza das fraudes eleitorais que antes ocorriam no processo.
Hoje as fraudes existentes ocorrem mediante a compra de votos, o abuso do poder econômico, dos meios de comunicação e do uso de recursos públicos para financiar as eleições dos detentores de mandatos.
Essa é a verdadeira fraude a ser combatida e que poucos se dão ao trabalho de analisar, voltando-se para o debate estéril de que a urna eletrônica não é segura e que é suscetível a fraudes.
Nos últimos 25 anos acompanhei diversas denúncias de que os votos desse ou daquele candidato teriam “sumidos”.
Quando me chegam essas notícias a primeira coisa que pergunto é: — o boletim de urna está diferente do que foi totalizado pelo TSE?
Até hoje ninguém nunca me apresentou um único boletim divergente.
Apesar disso ficam falando tolices nas redes sociais.
O processo de votação brasileiro é muito simples e fácil de ser auditado – como querem.
Vejamos: a urna eletrônica é instalada pelo presidente da seção e seus auxiliares na presença dos fiscais dos partidos e candidatos, podendo ter um para cada seção; a urna não tem qualquer contato com redes de internet, é apenas ligada na tomada da rede elétrica; antes de iniciada a votação é emita a “zerésima”, comprovando que nenhum dado se encontra naquela urna; ao final é emitido o boletim de urna, contendo o número de eleitores que votaram, os votos atribuídos a cada candidato, os brancos e nulos.
A urna eletrônica faz a apuração dos próprios votos, emite o resultado, entregando a cada fiscal de partido e candidatos o BU.
Apenas depois disso os dados são remetidos para totalização, quando os votos já foram apurados.
Até hoje, como disse anteriormente, não vi um boletim de urna afixado na seção eleitoral divergir daquele boletim de urna emitido pelo TSE após a totalização.
Ah, mais pode ser que a urna tenha sido “programada” para contar para o candidato adversário os votos atribuídos a outro candidato.
Existe previsão legal para sortear em todo território nacional urnas para ser feita essa verificação.
Os delegados do partidos podem solicitar auditoria na urna 001, localizada na seção 005, da escola Chico Mendes, em Xapuri, Acre ou na urna localizada na seção 003, no Colégio Bandeirantes de Gonçalves Dias, Maranhão, que uma ou outra estarão à disposição para auditoria.
Como é que o sistema não é auditado?
A título de teste pode se colocar um grupo de pessoas para “votarem em aberto”, apenas para saber se aquela urna apresenta alguma possibilidade de haver sido fraudada.
Repito, até hoje com todos mecanismos postos à disposição dos partidos e candidatos, não houve uma única situação comprovando que o sistema eleitoral brasileiro apresenta possibilidade de fraude.
O processo de totalização, também, é feito de forma transparente podendo os partidos políticos nomearem delegados para acompanharem todas as suas fases, bem como, nomearem assistentes peritos.
As fraudes eleitorais no país existem, mas são aquelas que já tratamos anteriormente.
O senhor Bolsonaro e seus seguidores insistem nessa cantilena de o sistema eleitoral é frágil não por acreditarem que isso seja verdadeiro, mas como “tábua de salvação” a justificar uma tentativa de golpe na democracia brasileira.
Querem o tumulto, a desordem, como forma de se manterem no poder.
O presidente da República, desde que chegou ao poder trabalha com essa perspectiva.
Tudo que faz é com o cálculo eleitoral que passa longe do que costuma chamar “as quatro linhas da Constituição”.
Infelizmente alguns militares brasileiros, talvez picados pela mosca azul da política ou deslumbrados pelo poder, acham que podem apostar num retrocesso institucional devolvendo o país aos sombrios anos da ditadura.
Militares descompromissados com a nação, tentam a todo custo, levarem a política para dentro das Forças Armadas, ignorando o risco que isso pode trazer à normalidade democrática conquistada depois de uma longa noite de ditadura que durou 21 anos.
Assanhados como vivandeiras de quartéis acham que podem ameaçar a democracia com suas bravatas.
Fazem um jogo muito arriscado.
Como já dizia o velho Ulysses Guimarães: “o povo tem ódio e nojo de ditaduras”.
Abdon Marinho é advogado.