AbdonMarinho - Falta juízo a República.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Falta juízo a República.


FALTA JUÍZO A REPÚBLICA.

Por Abdon Marinho.

UM ANO e trezen­tos mil mor­tos depois o pres­i­dente da República chamou uma reunião entre as autori­dades dos três poderes, alguns gov­er­nadores e out­ras autori­dades.

A ideia seria, ao menos em tese, criar um comitê cen­tral visando acom­pan­har a evolução da pan­demia, cen­tralizar as dis­cussões sobre o tema e apre­sen­tar soluções à mais grave crise san­itária pela qual passa a humanidade em séculos.

Os otimis­tas saudaram com júbilo a ini­cia­tiva. Pensou-​se: final­mente o bom Deus restau­rou o juízo nas cabeças das autoridades.

Era engano, Deus, provavel­mente, tem coisas mais impor­tantes para acom­pan­har ou já chegou à con­clusão de que as autori­dades brasileiras são um caso per­dido.

Poucos dias depois e mais trinta mil cadáveres à conta da des­graça, já assistiu-​se de tudo, menos que ter­e­mos autori­dades pre­ocu­padas com sorte (azar) dos cidadãos.

Já no dia da primeira reunião do tal comitê, enquanto, alguns dos seus mem­bros recomen­davam o uso de más­caras e o dis­tan­ci­a­mento social e out­ras medi­das, viu-​se o suposto pres­i­dente da República que, em tese, dev­e­ria ser o primeiro a procu­rar seguir as recomen­dações do comitê por ele cri­ado, bradar con­tra tais recomendações.

Muito além das palavras e exem­p­los sab­o­ta­dores da saúde da nação par­ti­ram para atos con­cre­tos: a Advocacia-​Geral da União — AGU, que dev­e­ria se ocu­par dos inter­esses da nação, foi bater às por­tas do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, para pedir a “lib­er­ação” de cul­tos e mis­sas pres­en­ci­ais.

Ao tomar con­hec­i­mento da ação a primeira coisa que me veio à cabeça foi: o que “dia­bos” o gov­erno tem a ver com esse assunto? As igre­jas, caso se sin­tam prej­u­di­cadas, não pode­riam elas próprias, “baterem” às por­tas do STF? Como Deus é onipo­tente, oni­sciente e onipresente, pre­cis­aria dos tem­p­los aber­tos e aglom­er­a­dos para ouvir o clamor do povo? O que o gov­erno tem a ver com díz­imo arrecadado pelas igre­jas já que sobre eles não recaem qual­quer tributação?

O Papa que, segundo dizem, con­versa dire­ta­mente com Ele, tem feito todas suas cel­e­brações da Pás­coa, no Estado do Vat­i­cano, onde é a autori­dade máx­ima, com os tem­p­los vazios. E, é provável que Deus não tenha se “zan­gado” com isso.

Se o Papa pode fazer assim, por qual motivo o pas­tor ou o padre da minha paróquia não pode fazer do mesmo jeito?

Mal me recu­per­ara do susto de teste­munhar o gov­erno ir ao Supremo defender uma causa que nem a Deus deve inter­es­sar – pois aprendi que Deus é amor e bon­dade –, foi a vez de assi­s­tir, escan­dal­izado, o Procurador-​geral da República, emi­tir pare­cer assentindo com a pre­ten­são do gov­erno.

Na comunhão de inter­esses tão sub­al­ter­nos ao que defende o pres­i­dente da República, talvez não exista uma causa cristã, mais sim, a vaidade que talvez os leve ao inferno: a próx­ima vaga de min­istro do Supremo a vagar em 5 de junho, com a aposen­ta­do­ria do min­istro decano Marco Aurélio Mello.

Na mesma sem­ana em que se falou tanto em união e soma de esforços para vencer a pan­demia e superar a crise dela advinda, vimos o Con­gresso Nacional, aprovar um orça­mento anual, que onze de dez econ­o­mis­tas dizem tratar-​se de uma peça de ficção, feito sob medida para preser­var as famosas emen­das dos par­la­mentares que, indifer­entes às con­tas públi­cas e aos inter­esses do povo, querem é um pedaço do orça­mento para “chamar de seu”.

Vimos, tam­bém, “com­erem” o orça­mento do IBGE e que tinha como des­tino o censo dece­nal, o prin­ci­pal instru­mento de plane­ja­mento do país.

Assim, em plena crise, não vemos ninguém pre­ocu­pado com o país, mas sim, em “tirar um pedaço” para si – indifer­ente do sofri­mento do povo.

E a sem­ana que dev­e­ria ser Santa, acaba com o mais novo min­istro do Supremo, nomeado pelo atual pre­sente, coin­ci­den­te­mente, con­ver­gir no inter­esse do gov­erno, através da sua AGU, da PGE e do próprio pres­i­dente, para deferir uma lim­i­nar autor­izando o fun­ciona­mento dos tem­p­los e igre­jas, con­trar­iando decisão do pleno do STF, que decidiu pela com­petên­cia dos esta­dos e municí­pios em fixarem tais nor­mas no inter­esse de debe­lar a crise san­itária.

A decisão do min­istro Nunes Mar­ques ocorre nos autos de uma ação de Arguição de Des­cumpri­mento de Pre­ceito Fun­da­men­tal, pro­posto por uma Asso­ci­ação Nacional de Juris­tas Evangéli­cos.

O assunto pare­ceu tão urgente e rel­e­vante que a lim­i­nar foi con­ce­dida entre a Sexta-​feira Santa e o Sábado de Aleluia.

Não teria sido tão ráp­ida se fosse um pedido para impedir a cru­ci­fi­cação de Cristo.

Aliás, trami­tação mais ráp­ida só aquela em que Pilatos usou para con­denar Jesus.

Como dito ante­ri­or­mente não são ini­cia­ti­vas movi­das pela fé ou pelo zelo das coisas de Deus. Têm sim, a moti­vação dos inter­esses pes­soais e a sabu­jice de quem se sente deve­dor de algo ao nomeador.

Para agradar ao chefe, se esse os pedisse para deixar de res­pi­rar, cer­ta­mente deixariam, ainda que isso lhes cus­tassem a vida.

Desac­er­tos, incom­petên­cia e crimes têm pon­tu­ado a atu­ação das autori­dades da República na con­dução da pandemia.

Estes “desac­er­tos” se reflete no número de vidas per­di­das, de famílias enlu­tadas e no sofri­mento dos brasileiros.

Na quarta-​feira, dia 31 de março, uma sem­ana após à reunião de cri­ação do suposto comitê, o Brasil, soz­inho, reg­istrou 30% (trinta por cento) dos mor­tos pela pan­demia no mundo. O Brasil, que responde por ape­nas 2,7% (dois vír­gula sete por cento) da pop­u­lação mundial.

Já são mais 330 mil vidas per­di­das e os estu­diosos pro­je­tam que no ritmo em que as coisas estão indo por aqui, só no mês de abril, perder­e­mos mais 100 mil vidas, para acu­mu­la­rmos 430 mil vidas per­di­das ao tér­mino de um mês.

Quan­tos brasileiros mais terão que mor­rer até as autori­dades da República assumam as suas respon­s­abil­i­dades e passem a diri­gir o país? Quin­hen­tos mil? Um mil­hão de vidas per­di­das? Vão con­tin­uar agindo como fiz­eram até aqui? Será que não perce­beram que há muito essa baderna deixou de ser somente política, guerra ide­ológ­ica e que o que estão fazendo é um crime con­tra a humanidade?

Exis­tem alguns números que dizem muito sobre o que acon­tece no Brasil e sobre o desserviço que nos­sas autori­dades vêm pre­stando à patuleia.

Numa escala de pro­porção, se a Aus­trália fosse dirigida pelo gov­erno brasileiro, eles estariam com aprox­i­mada­mente 25 mil mor­tos, lá mor­reram 906 durante um ano; se a Nova Zelân­dia fosse gov­er­nada pelo gov­erno brasileiro, eles estariam com cerca de 5 mil mor­tos, lá mor­reram, em um ano de pan­demia, 26 pes­soas e a vida já está voltando ao “nor­mal”; se a Índia fosse gov­er­nada pelos diri­gentes do Brasil, estariam chorando a perda de 2 mil­hões de indi­anos, por lá mor­reram, até aqui, menos da metade dos que mor­reram no nosso país.

A Índia, uma nação super­povoada, com mais de um bil­hão e trezen­tos mil­hões de pes­soas, com condições san­itárias de todos con­heci­dos ao redor do mundo, com mil­hões de pes­soas vivendo na extrema pobreza, apre­senta uma per­fo­mance mel­hor do que a nossa na con­dução e com­bate à pan­demia.

Com todas as suas difi­cul­dades não é a Índia ou as nações africanas, com sua pobreza mile­nar, o cen­tro das pre­ocu­pações do mundo, é o Brasil.

O nosso país fez tudo que podia fazer de errado – e con­tinua fazendo.

Um ano depois de ini­ci­ada a pan­demia, reg­is­trando mais 330 mil vidas per­di­das, a maior tragé­dia da nossa história e as autori­dades mais voltadas em fazer política, em se pre­ocu­par com as eleições do ano que vem, com a vacân­cia das vagas no Supremo, em adu­lar o atual pres­i­dente da República.

Vemos advogado-​geral da União, procurador-​geral da República, min­istro do Supremo, pre­ocu­pa­dos em aten­der o desejo do pres­i­dente da República para que não minguem seus votos nas eleições pres­i­den­ci­ais do ano que vem.

Vemos par­la­mentares que dev­e­riam se asso­cia­rem aos esforços da nação para enfrentar a pan­demia e depois em recu­perar a econo­mia do país, mais pre­ocu­pa­dos em garan­tir suas emen­das, em faz­erem “caixa” para suas eleições.

Tudo isso enquanto o país mer­gulha em difi­cul­dades de todos os tipos.

Falta juízo e respon­s­abil­i­dade a República.

Abdon Mar­inho é advogado.