AbdonMarinho - MARCO ARCHER, A DIPLOMACIA E CHARLIE HEBDO.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

MARCO ARCHER, A DIPLO­MA­CIA E CHAR­LIE HEBDO.

MARCO ARCHER, A DIPLO­MA­CIA E CHAR­LIE HEBDO.

Afora o este­lion­ato eleitoral explic­ito da atual pres­i­dente da República que ini­cia o mandato fazendo exata­mente o oposto do prom­e­tera na cam­panha (o que é visível e recon­hecido até por seus ali­a­dos mais emped­ernidos), os fatos que mais moti­varam debates, em todo mundo, neste começo de ano foram: o ataque ter­ror­ista à sede do jor­nal satírico Char­lie Hebdo e a exe­cução do traf­i­cante brasileiro Marco Archer pelo gov­erno da Indonésia em cumpri­mento à sen­tença de pena cap­i­tal imposta pela Justiça daquele país.

Sobre o este­lion­ato eleitoral que viti­mou os eleitores brasileiros e que nos faz sofrer as con­se­quên­cias atual­mente, nos ocu­pare­mos num texto especí­fico, agora tratare­mos dos dois out­ros fatos nos quais o Brasil rev­elou toda a sua insignificân­cia no cenário político mundial.

Com relação a exe­cução do traf­i­cante brasileiro – fato que divide as opiniões dos cidadãos: uns achando que a pena foi bem apli­cada e out­ros se posi­cio­nando com­ple­ta­mente aves­sos à pena de morte – a diplo­ma­cia pas­sou ao mundo o retrato acabado do quanto é iná­bil no trato das questões deste jaez. Não digo que con­seguisse comu­tar ou uma extradição do cidadão brasileiro (emb­ora ten­hamos notí­cias que a Aus­tralia con­seguiu a extradição de dos seus cidadãos em condições semel­hantes), entre­tanto ficou patente, segundo todos os espe­cial­is­tas que foram ouvi­dos, que o gov­erno brasileiro agiu tarde e sem argu­men­tos ou com a argu­men­tação des­fo­cada. Nem colo­que­mos aqui o tele­fonema patético de Dilma pedindo clemên­cia, invo­cando sua condição de mãe e avó. Não creio que este seja moti­vação vál­ida para se descon­sti­tuir uma sen­tença pro­ferida pela justiça de uma nação estrangeira soberana.

No caso de Marco Archer o gov­erno brasileiro pas­sou onze anos sem acer­tar o tom de uma negociação.

Vejam que aqui não dis­cuto a justeza ou não da pena. Emb­ora, com a mesma tran­quil­i­dade que desaprovo a pena de morte, por enten­der que em casos de erros não há como cor­ri­gir ou saber que nos lugares onde é apli­cada não resolveu, como dev­e­ria, a causa a que se propôs, até pela leniên­cia e des­or­ga­ni­za­ção do Estado em aplicá-​la, entendo, tam­bém, que as penas brasileiras são um estim­ulo à crim­i­nal­i­dade, um con­vite a delinquência.

O Estado brasileiro, agora, mais do que nunca, vestiu a cara­puça da respon­s­abil­i­dade. O Estado entende que a sociedade que é a vítima maior do crime é a respon­sável pela vio­lên­cia. O que é, como todos sabe­mos, uma tolice.

Parte da sociedade brasileira embarca na mesma pro­posta furada: de que todo crime é fruto e con­se­quên­cia do meio social em que vive o indi­ví­duo, por isso mesmo, as penas devem ser leves e educa­ti­vas. E que os ban­di­dos, todos eles, são recu­peráveis e devem ser acol­hi­dos por suas víti­mas. Essa visão equiv­o­cada faz com que a crim­i­nal­i­dade só aumente, pois o crim­i­noso não tem respeito pela autori­dade estatal a que se submetem.

Isso faz com que, cada vez mais, o crime com­pense. O traf­i­cante Marco Archer ao arriscar-​se a traficar dro­gas para a Indonésia, fez na certeza que não seria pego (noticia-​se que fez for­tuna com trá­fico), caso fosse, iria livrar-​se com a mesma facil­i­dade com a qual se livram, todos os traf­i­cantes e demais crim­i­nosos no Brasil, com chance até de se tornar famoso.

Pas­sou desaperce­bido, mas foi uma descom­pos­tura em regra pas­sada na cara da pres­i­dente brasileira, a man­i­fes­tação do chefe do Min­istério Público daquele país, ao dizer que se devia respeitar as leis do seu país e que traf­i­cante, por lá, não vira celebridade.

O fato é que o pres­i­dente indoné­sio, assim como o resto do mundo, não leva a sério o gov­erno brasileiro por conta destas posições equiv­o­cadas, tanto no plano interno, e mais grave ainda, no externo.

Não pre­cisamos ir muito longe, basta dizer que faz menos de um ano que, em plena Assem­bleia Geral da ONU, a pres­i­dente do Brasil admoes­tava as nações oci­den­tais e cobrava que se bus­casse um canal de dial­ogo com os ter­ror­is­tas do Exército Islâmico, enquanto estes se ocu­pavam da nobre tarefa de sep­a­rar as cabeças de jor­nal­is­tas de seus cor­pos e prat­i­cavam todo tipo de genocí­dio con­tra todos que não \«rezassem\» por sua car­tilha, não impor­tando se eram cristãos, cur­dos, muçul­manos, suni­tas, xiitas e quais­quer out­ros ou que fos­sem mul­heres, vel­hos ou crianças.

Com estas pes­soas, em plena Assem­bleia Geral da ONU, o gov­erno brasileiro, propôs um diálogo.

Se o gov­erno errou na con­dução do caso Marco Archer e do outro brasileiro que tam­bém se encon­tra no corre­dor da morte no mesmo país asiático pelo mesmo crime: trá­fico de dro­gas, errou de forma mais acen­tu­ada no caso do ataque ter­ror­ista ao jor­nal Char­lie Hebdo, ocor­rido dias antes da execução.

Vou além, digo que errou mais neste último caso porque neste, não pre­cisava fazer muita coisa, não envolvia nego­ci­ações bilat­erais com­plexas, bas­tava que ficasse do lado certo, que protes­tasse com veemên­cia con­tra o ato terrorista.

A nota do gov­erno brasileiro não cap­tou o momento histórico de se afir­mar favorável a um dos pilares sobre as quais se assenta a democ­ra­cia oci­den­tal que é a liber­dade de imprensa e expressão.

O gov­erno brasileiro, ao con­trário do que se espera, não deu e dar a dev­ida importân­cia a esses val­ores, tanto que o nosso país não se fez rep­re­sen­tar na Mar­cha de Paris con­trária ao ter­ror, por sua pres­i­dente ou mesmo o vice-​presidente e sim por sim­ples diplo­mata que ficou numa posição de pouco destaque.

A pres­i­dente brasileira ou alguém com maior rep­re­sen­ta­tivi­dade, preferi­ram ficar cuidando de assun­tos domés­ti­cos, ao se mostrar junto com mais impor­tantes líderes mundi­ais em repú­dio ao aten­tado terrorista.

Emb­ora não digam, a visão do gov­erno e de parte da sociedade brasileira, inclu­sive daque­les mais infla­ma­dos con­tra a exe­cução do traf­i­cante brasileiro Marco Archer, é de que os char­gis­tas do Char­lie Hebdo deram causa, foram os cul­pa­dos, bus­caram por suas mortes.

Vejam como isso é con­tra­ditório: muitos que, com razão, se colo­cam con­tra a pena de morte de um traf­i­cante, acham que sáti­ras, charges e desen­hos, devem ser punidos com a pena capital.

Aprendi desde cedo que o bem mais valioso a ser pro­te­gido pelo Estado e pela sociedade é a vida. Assim, entendo só haver legit­im­i­dade para que se retire a vida de alguém na defesa de sua própria vida ou de out­rem. Daí ser, por princí­pio, con­trário a pena de morte.

O ataque ter­ror­ista ao Char­lie Hebdo foi uma afronta a toda a sociedade e aos seus princí­pios. O argu­mento, ainda que fajuto, de respeito à religião e fé alheia, não serve de jus­ti­fica­tiva para que se tire a vida de quem quer que seja. Édi­tos com sen­tenças de morte com tais argu­men­tos não podem ser aceitos com nor­mais em pleno século vinte e um.

O mesmo dire­ito que asse­gura a qual­quer pro­fes­sar a fé que quiser é o mesmo não a obri­gar qual­quer cidadão a pro­fes­sar fé alguma ou a respeitar a fé a alheia. O sen­ti­mento reli­gioso é íntimo entre o indi­ví­duo e seu deus. E isso não obriga os que estão ao seu redor a respeitar esse deus ou seus pre­gadores, cri­adores ou pro­fe­tas. Muito menos que saiam matando por conta disso.

Os Cristãos dos primeiros anos foram persegui­dos por não ado­rar, respeitar ou curvar-​se ante a miri­ade de deuses romanos; com a ascenção do cris­tian­ismo foi a vez destes perseguirem aque­les que não pro­fes­savam sua fé. A humanidade evoluiu para garan­tir que cada um tenha dire­ito a uma fé ou a nen­huma, sem ser molestado por isso. Essa é uma con­quista sec­u­lar. Se hoje acham-​se no dire­ito de matar por uma gravura, seja ela qual for, amanhã se acharão no dire­ito de matar aque­les não pro­fes­sam sua fé, depois por sus­peitar que alguém a desre­speitou e a seus seguidores, e por aí vai.

Ao diz­er­mos somos todos Char­lie, esta­mos dizendo que aceita­mos o retorno ao obscurantismo.

Abdon Mar­inho é advogado.