A CAPOTAGEM DO BRASIL.
Por Abdon C. Marinho.
CONVERSAVA com um dos meus sobrinhos certa vez quando, a propósito de algo que já não lembro, ele saiu-se com esta: –– ah, tio, o mundo não gira, ele capota.
Uma gíria comum da juventude que não se dá muita “trela” quando pronunciado, hoje, entretanto, analisando a quadra politica, fico a pensar o quanto tal “chiste” não se reveste de verdade e profecia.
Em outras palavras, diante das lembranças e dos olhos de todos, não digo o mundo, mas, certamente, o Brasil “capotou”.
Lembro que em 1984 milhões de cidadãos brasileiros em todas as cidades do país, vestidos de verde e amarelo saíram às ruas a protestar contra o regime militar, que já durava vinte anos, e com uma pauta bem específica: Diretas já!
O clamor de todos era pela volta dos militares para os quartéis, ou seja, para fora da vida política nacional, e pelo direito de votarem em um presidente civil para conduzir a nação depois da longa noite que durou vinte anos.
Além do brado forte, principalmente, na voz do locutor Osmar Santos, que se tornou a voz da daquela campanha, outras palavras de ordem se ouviam, tais como: “um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos eleger o presidente do Brasil”, e tantas outras.
As lembranças que tenho, daquele ano em que ainda era menino, é das praças lotadas para os comícios das “Diretas Já!”, em todas as capitais do país, sem qualquer mobilização, que não fosse o “boca a boca”, as multidões reuniam-se para ouvir os líderes políticos que encabeçavam o movimento: Tancredo Neves, Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Miguel Arraes, Lula, Brizola; e, também, dezenas de artistas que se somavam ao movimento: Gil, Caetano, Chico, Fafá de Belém, e tantos outros.
O hino nacional era entoado em todos os cantos do país como prenúncio da esperança pelos tempos novos que se esperavam que viessem.
A campanha das “diretas já!” tinham por objetivo a aprovação da proposta de emenda constitucional de autoria do deputado federal Dante de Oliveira transferindo para os cidadãos/eleitores o direito de escolher o presidente da república que desde a instauração do regime militar passou a ser feita por um Colégio Eleitoral.
A eleição do presidente pelo tal colégio já estava programada para 15 de janeiro de 1985 e o que se queria na campanha pelas diretas já era que essa escolha já se desse pela votação dos cidadãos.
Às vésperas da votação da emenda Dante de Oliveira o presidente de então, João Batista de Figueiredo, decretou “Estado Sítio”, o acesso a capital federal, foi cerceado.
Não sei se por conta disso ou pela falta de votos – o quórum para aprovar emenda constitucional é diferenciado –, a emenda não foi aprovada.
O sonho de voltar a escolher por votação direta o presidente da república somente seria concretizado cinco anos depois daquela campanha, em 1989.
Em 1985 tivemos a última eleição no Brasil através do Colégio Eleitoral tendo sido eleitas chapa Tancredo Neves e José Sarney.
Era o nascimento do que ficou conhecida como “Nova República”.
Com a morte de Tancredo Neves, coube a Sarney a iniciativa de cumprir a promessa de acabar com o Colégio Eleitoral e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.
A Constituição de 1988, também conhecida como a “Constituição Cidadã”, trouxe as balizas do novo estado brasileiro, no pós ditadura. Dentre elas o voto universal e direto para todos os cargos eletivos, de vereador a presidente da república.
Todo cidadão brasileiro tem o direto/dever de participar da vida política do país, tendo voto o mesmo valor: “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei …”. Constituição Federal, art. 14.
Vejam que Constituição é clara ao dizer que o voto do branco, do negro, do indígena, do pobre, do rico, do nordestino, do sulista, do nortista, do homem, da mulher, etc., todos têm o mesmo valor.
Tal soberania com voto universal direto e secreto e com igual valor não é uma “graça” é uma conquista da sociedade obtida à duras penas, depois de vinte e um anos de ditadura, e de mais quatro de embates pela e durante a elaboração da Constituição.
O direito/dever de participar da vida política do país, dos estados e municípios vem sendo exercido de forma regular a cada dois anos.
Aqui, cabe observar que, embora com a limitações impostas pelo regime militar, apenas a eleição de presidente da república, de prefeitos das capitais e do governador do Distrito Federal, não eram diretas.
Em 1986, conquistou-se o direto de se eleger os prefeitos das capitais e, em 1989, o direito de escolhermos o presidente da república.
Logo, desde 1989 que o processo eleitoral para presidente ocorre de forma regular, conduzido pela Justiça Eleitoral cada vez mais moderna e atuante e os mandatos sendo exercidos nos moldes da Constituição Federal e no respeito às leis.
Nestes 33 anos, tivemos eleições regulares para presidente em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014, 2018 e 2022.
Ah, tivemos, dois impeachment de presidente feitos em conformidade com a lei, que, muito embora tenham sido questionados, foram considerados legais.
O breve histórico acima – inclusive o de cunho emocional –, serve para tentarmos compreender a “capotagem” que o Brasil vive.
Desde que as urnas eletrônicas pronunciaram, em segundo turno, o resultado das eleições presidenciais que temos assistido a uma série de protestos contra resultado do pleito. Já tivemos bloqueios de estradas, causando prejuízos de milhões ao país e, até, no último dia 2 de novembro, dia consagrado aos mortos, dezenas, centenas e até milhares de pessoas reunidas em frente aos quartéis das Forças Armadas com apelos para que façam uma intervenção militar.
A fotografia é extraordinária.
Vemos pessoas, que, talvez, desconheçam os fatos históricos, irem para a frente dos quartéis pedindo que militares saiam do lugar para onde os mandamos ir em 1984/85.
É, como dizem os jovens, uma capotagem histórica.
Sempre disse e reafirmo que é que essa ideia de pedir intervenção militar, desconhecer o resultado das eleições presidenciais é coisa de “lunáticos”.
Isso para não dizer coisas piores.
Ficamos um quarto de século (1964 - 1989) privados da nossa cidadania, tendo negado o direto básico de escolhermos quem seriam as pessoas encarregadas de conduzir os destinos da nação e agora, quando a democracia brasileira encontra-se em processo de consolidação e aprimoramento, aparece-nos estes cidadãos pregando o retrocesso institucional.
Oportuno registrar que não se tratam de adolescentes que não conhecem ou não acompanharam o processo histórico do país, entre os que paralisam estradas, os que acampam não frente dos quartéis, encontram-se senhores, senhoras e até idosos que viveram o período de exceção; não se trata, também, de iletrados ou pessoas sem conhecimento, entre eles estão todos os tipos de pessoas e profissionais, médicos, engenheiros, professores, enfermeiros, advogados.
São pessoas que tiveram a oportunidade de estudar e adquirir conhecimento, bem poderiam “perder um tempinho” se dedicando a conhecer a história do país, muito embora, não se trate de pessoas que desconhecem tais fatos.
Na verdade, são pessoas que passaram por um processo de radicalização política que, assim como os devotos do sebastianismo, acreditam na volta do rei D. Sebastião.
Vejam que à míngua de qualquer argumento tentam anular uma eleição livre por não terem concordado com o resultado.
Que tipo de loucura é essa? Ainda que a eleição terminasse empatada, a previsão da lei é que o mais velho assuma.
Ter-se-ia que respeitar os resultados do pleito.
Já tivemos diversos casos assim, aqui mesmo no Maranhão.
A democracia pressupõe o respeito da vontade da maioria, ainda que não seja uma maioria elástica, é a regra do jogo. Aliás, quando da eleição do atual presidente, 2018, seus amigos e partidários fizeram distribuir e afixar nos diversos cantos do país outdoors com dizeres semelhantes.
Questionar o resultado do pleito, ignorar uma diferença de mais de dois milhões de votos, manifestação livres de eleitores é, com o perdão da palavra, coisa de lunático.
Não interessa se o vencedor é melhor ou pior que o perdedor, o pressuposto da democracia é o respeito à vontade extraída das urnas.
A história mostra o muito que demoramos para chegarmos até aqui, não podemos admitir retrocessos.
Abdon C. Marinho é advogado.