COM A DEMOCRACIA NÃO SE DEVE BRINCAR.
Por Abdon C. Marinho.
CORRIA o ano de 1992 quando comecei atuar com mais efetividade no processo eleitoral. Ainda estava no segundo ano do curso de direito. Participara como militante das eleições anteriores e aquela iria atuar mais na linha de frente pois um amigo era candidato a vereador, Conceição Andrade, do PSB, candidata a prefeita.
A Justiça Eleitoral na capital funcionava toda no prédio do TRE, na Areinha. No piso superior funcionava a segunda instância e no inferior funcionavam as zonas eleitorais que, se não me falha s memória, eram apenas cinco, de primeira à quarta e a mais nova, septuagésima sexta. O acesso aos cartórios era por fora e, quando se tinha que tratar de algo na segunda instância acessava-se o segundo pavimento pela porta principal – devemos recordar que nem se falava no anexo, era só o prédio principal. As aglomerações eram inevitáveis e sempre muito animadas.
Faço tal retrospectiva porque foi por essa época que aprendi minhas primeiras lições de direito eleitoral: que os prazos na justiça eleitoral são peremptórios (que perime; que não admite dúvidas ou objeções; decisivo, terminante; que põe termo à ação ou instância judicial) e preclusivos (relativo a preclusão – conclusão de um processo, pelo fato de não ter a parte praticado certo ato, dentro do prazo estipulado pela lei ou pelo juiz).
Ainda me vem à lembrança as palavras do secretário da segunda ou primeira zona, Victor Hugo, quando chegávamos para protocolar alguma petição ou contestação e o prazo se esgotara: — meu doutor, o prazo terminou há dois minutos (ou cinco, ou dez), o senhor sabe que os prazos são peremptórios e preclusivos, vou receber e certificar. Ainda que se tentasse argumentar que fora, um dois ou três minutos de atraso, a resposta já vinha pronta: — doutor, prazo é prazo.
Feito isso, o juiz só tinha o trabalho de colocar o despacho padrão de não reconhecer da reclamação ou da defesa por ter sido protocolada fora do prazo.
Outro episódio lapidar sobre a questão de prazo e oportunidade deu-se no pós eleições de 1994. Dois candidatos um eleito e o outro não (José Carlos Sabóia e Haroldo Sabóia) travaram uma briga judicial pelos votos grafados com a variação “Sabóia”. Haroldo reclamava que os votos com tal variação, mesmo nos municípios onde tinha votação, tinham sido atribuídos a José Carlos.
Para o que interessa ao presente texto, após muitas idas e vindas, o Tribunal Superior Eleitoral - TSE, deu ganho de causa a Haroldo e determinou a recontagem dos votos. Montadas as Juntas para a apuração dos votos questionados, os representantes dos dois candidatos (advogados, delegados e fiscais) tinham missões antagônicas, os de Haroldo, a responsabilidade de validar os votos em seu favor; os de José Carlos, de impugnar.
A impugnação dava-se voto a voto. O presidente da mesa chamava um voto atribuindo-o a Haroldo, o representante de José Carlos na mesma hora, antes de dar tempo de chamar o próximo voto, tinha que dizer: “impugno”. Isso, centenas, milhares de vezes. Se o representante se distraia ou piscava, perdia a chance de impugnar.
Ainda que se tentasse argumentar, lá vinha resposta cortante e definitiva do juiz/presidente da junta: — doutor, a impugnação dar-se voto a voto. E a mais cruel: —doutor, o direito não socorre aos que dormem, cumpra seu papel.
Ainda restava a opção de se fazer um recurso, também, oral, para ser lavrado na ata de apuração e que o resultado já era de todos conhecidos.
Eis que, trinta anos depois, na principal eleição do país, a de presidente da República, me deparo com uma inusitada e despropositada tentativa de tumultuar o processo eleitoral – o que nos levaria à chancela de república de bananas –, tendo por motivação uma suposta fraude eleitoral,
Na noite de segunda-feira, da semana anterior a data eleição, nos aparece para conceder entrevista, em frente ao Palácio da Alvorada – o que me fez lembrar o não tão saudoso tempo do governo Figueiredo, até pela luminosidade do local e o ar de gravidade –, o ministro das comunicações e o coordenador de comunicação da campanha à reeleição do presidente da República.
A denúncia (?) formulada pelos dois imberbes em matéria eleitoral era que a eleição estaria comprometida porque as inserções de rádio do candidato não passaram como deveriam ou não passaram nas emissoras do nordeste.
Foi o que bastou para a malta ligada ao presidente inundassem as redes sociais, grupos de aplicativos e até mesmo seguimentos da mídia profissional com denúncias de fraude eleitoral e que as eleições presidenciais deveriam ser adiadas – talvez até, quem sabe, já diplomar o recandidato por conta do “não fato”.
Os advogados presidenciais protocolaram uma representação (?) que, apanhado de surpresa o presidente do TSE, determinou que em 24 horas apresentassem provas.
Um erro do presidente do TSE. Por se tratar de matéria relativa a propaganda eleitoral, o pedido deveria ter sido encaminhado a um dos juízes da propaganda (ou mesmo a ele, se estiver nessa missão), identificando cada uma das emissoras e data em que a suposta inserção não foi exibida, já indeferindo de plano, todas aquelas que não estivessem dentro do prazo estabelecido na lei e resolução do TSE.
Em se tratando de suposta irregularidade em propaganda, o rito a ser adotado era o rito próprio estabelecido na resolução que trata de propaganda.
O presidente, talvez por excesso de zelo, determinou foi que juntassem provas e, após isso, indeferiu a inicial por não ter encontrado quaisquer elementos probante do que fora alegado, mais parecendo, como acentuou no voto, uma cortina de fumaça com a intenção de tumultuar o processo eleitoral, como, de fato tumultuou.
Na mesma noite em que indeferiu o pedido da campanha do presidente, noticiou-se que ele convocara uma reunião com seu comando de campanha eleitoral na qual se fizeram presentes, entre outros, o ministro das relações exteriores, os comandantes das forças militares, etc.
Um absurdo, uma loucura total.
Espero, até, que tal notícia seja falsa, uma vez que desde o fim do regime militar não tínhamos notícias de militares participando de reuniões de campanha.
Foram além. Depois da suposta reunião, o presidente declarou que iriam as últimas instâncias contra a decisão do TSE que determinou que local ideal da tal representação era a lata de lixo.
Após a repercussão negativa junto ao eleitorado que buscavam conquistar ou diante da recusa dos militares em participar de qualquer aventura golpista, parece-me que resolveram acordar para a realidade. Já vimos o ministro das comunicações dizer que não era bem isso, que a falha fora da campanha, etc.
A mim, sobra a percepção que estas pessoas não estão em seu juízo perfeito, só isso para justificar tantas coisas fora de rumo.
A democracia brasileira é recente mas consolidada. Não é admissível que a toda hora a coloque em prova ou que “se brinque” com ela.
O processo eleitoral brasileiro, até nos mínimos detalhes, é regulado por leis e por resoluções. Na lei temos solução para tudo, fora da lei temos a barbárie.
Será que alguém em seu juízo perfeito cogitaria paralisar o processo eleitoral de uma eleição presidencial porque uma emissora de rádio FM, lá de Afuá (PA) ou de Canindé do São Francisco (AL) ou mesmo a emissora de Luis Domingues (MA), as 23 horas de um dia qualquer, deixou de transmitir uma inserção.
A paranóia e a mania de perseguição os levou a cogitarem um complô envolvendo as emissoras de rádio, o partido adversário e o próprio TSE para prejudicá-los. Daí a necessidade de se convocar o ministro das relações exteriores, comunicações, comandantes das forças armadas com o comando da campanha eleitoral para saberem o que fazer.
Aí, se rebelam e criticam o TSE, quando eles, partidos e membros da campanha deveriam ter feito o “dever de casa” fiscalizando, em cada município ou junto a todas as emissoras, o cumprimento do plano de mídia.
A responsabilidade por tal fiscalização, repete-se, é dos partidos e candidatos, sempre foi assim. Cabendo ao TSE, tão somente, junto com eles e com o pool de emissoras, a definição do plano de mídia, julgar direito resposta, os abusos cometidos e as reclamações dos partidos e candidatos se feitas em conformidade e nos prazos estabelecidos na resolução.
Ao suscitarem uma falsa polêmica, por ignorância ou má-fé, a pergunta que se impõe é: que tipo de erva esse povo consome? Pensam que a democracia é a Casa da Mãe Joana?
O que aconteceu nesta última semana foi algo muito sério. Em nome de interesses pessoais, se faz questionamentos indevidos, envolve-se as Forças Armadas em assuntos que não são de sua alçada e se fragiliza a democracia.
Acho imperioso que após as eleições se faça uma rigorosa apuração dos fatos e se puna, como se deve, os responsáveis pela pataquada.
Abdon C. Marinho é advogado.