LÍNGUA NÃO É OSSO …
Abdon C. Marinho.
IBN AL-MUKAFA (que significa Ibn filho de Mukafa, que, por sua vez recebeu o nome de Mukafa, por ter sido torturado pelo governador a quem servia como coletor de impostos que suspeitara de sua honestidade), nascido no ano de 724, na Pérsia, era homem de rara cultura, escreveu ou colecionou histórias, segundo ele, vindas de culturas bem mais antigas e distantes no livro intitulado Calila e Dimna.
Em uma frase marcante, ainda na apresentação do livro diz: “o machado corta a árvore, e esta volta a nascer e crescer; a espada corta a carne e quebra o osso, e a ferida sara e o osso solda – mas feridas que a língua abre nunca se cicatrizam”.
Ganhei o livro de presente lá no inicio dos anos noventa e desde então nunca mais dele me afastei, exceto pelos períodos em que esteve emprestado ou que alguém o pediu emprestado e não devolveu forçando-me a comprar outro.
Refletia outro dia sobre o milenar ensinamento transcrito acima e pensava na situação do presidente do Brasil e candidato à reeleição.
Pois bem, a lembrança e correlação que fiz entre o tal político e os ensinamentos do livro de Ibn Al-Mukafa foi que, se não tivesse quaisquer outras razões para não sufragá-lo nas urnas, uma razão, à vista de todos, um impedimento moral e ético me impediria de fazê-lo: o seu comportamento durante a pandemia, a falta de consideração, respeito, empatia, solidariedade àqueles que perdiam seus pais, avós, tios, filhos, amigos.
Como ele próprio confessou, em data recente, suas “alopradas”.
Um presidente da República não pode, não deve e não tem o direito de “aloprar” durante o momento mais grave vivido por seus concidadãos.
Mesmo quando não se pode fazer nada, sobra o dever de ser solidário.
Foi o que não tivemos.
Já se foram quase 700 mil vidas perdidas sem que houvesse um gesto sincero de solidariedade de sua excelência para com às vítimas e/ou seus familiares e amigos.
Perdi diversas pessoas que me foram caras em vida e de quem a lembrança me enche de saudade.
Entre tantos, uma das primeiras pessoas que perdi foi a professora Nancy, de Maracaçumé. Conheci Nancy em uma das campanhas de Cafeteira – já não lembro se na de 1994 ou na 1998 ou no intervalo de ambas –, ela era vereadora na época, ajudava dezenas de pessoas e tinha uma responsabilidade especial com a formação de seus familiares, irmãs, sobrinhos, etc.
Durante anos, sempre que descia para região do alto Turi encostava em sua casa.
Nos últimos anos os afazeres de ambos nos afastou, mas sempre que passava por Maracaçumé e parava para o tradicional cafezinho na D. Cláudia, perguntava por ela e deixava recado.
Em fevereiro de 2020, na última viagem antes da pandemia, conseguimos nos reencontrar e trocar umas ideias.
Aí veio a pandemia, cerca de um mês – ou pouco mais que isso –, me alcança uma ligação do telefone de Nancy. Atendi: — oi, Nancy. Do outro lado linha respondem: — oi, doutor, não é Nancy, ela foi transferida com urgência para São Luís.
Acho que era uma sexta-feira. No domingo, uma outra ligação: — doutor, Nancy não se encontra mais entre nós.
Uma morte que além da perda, trouxe consequências para diversas outras pessoas.
Se não me falha a memória, a morte de Nancy deu-se entre as seguintes colocações de sua excelência: “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada” , 26 de março e “eu não sou coveiro”, de 20 de abril.
Depois de Nancy foi a vez de outro grande amigo, Adalberto Nascimento, ex-prefeito de Belágua, com que tive a honra e alegria de trabalhar durante quase dois mandatos inteiros.
Adalberto era uma pessoa extraordinária com quem dava gosto conversar. Sempre que tinha oportunidade, já depois do seu mandato, o convidava para tomar um cafezinho no escritório.
No início de junho um dos seus filhos me avisou que ele fora internado, acho que menos de uma semana depois recebi outra ligação, essa avisando que ele não resistira.
O isolamento não permitiu que sequer pudéssemos nos despedir dele. O cortejo com caixão fechado circulou pelas ruas da cidade.
O amigo Adalberto perdeu a vida entre duas frases de sua excelência: “a gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, de 2 de junho; e, “é como uma chuva, vai atingir você”, de 7 de julho, quando o número de vítimas já atingia 66.741 mortes.
Adalberto tinha apenas 60 anos quando foi “atingido pela chuva”, deixou oito filhos entrando na vida adulta.
O fim do ano trouxe-me mais um desalento.
Um amigo de infância, com quem brincava, com quem ia para escola quase todos dias, Gecimon Pereira, pegou COVID-19 e não resistiu. Tinha praticamente a minha idade, uma vida inteira pela frente, filhos e netos com quem partilharia muitas coisas boas.
Perdi essa amizade de uma vida inteira entre duas frases de sua excelência: “país de maricas”, dita em 10 de novembro; e “se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada com isso”, dita em 17 de dezembro, aquela altura o país já contava com 184.827 mortes pela pandemia.
Em junho de 2021 perdia outro grande amigo, José Raimundo Ferreira Verde, o nosso Verde, cuja a história se confundia com a história recente da Assembleia Legislativa do Maranhão. O conhecia desde que fui trabalhar naquela Casa, no início de 1991. Desde então, até o seu perecimento, mantivemos uma firme amizade.
Verde teve um ataque cardíaco fulminante em decorrência da COVID-19.
No mês de sua morte, sua excelência nos brindou com as seguintes frases de “conforto”: nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina”, o medicamento que queria porque queria fazer funcionar contra o vírus; e “quem pegou o vírus está imunizado”.
Por este período – ou pouco antes –, quase perdemos um dos meus irmãos, o que vem logo antes de mim, Francisco.
Não fosse a proteção de São Francisco e o severo monitoramento feito por um sobrinho e um irmão, talvez não estivesse aqui para contar a história.
Quando vimos as taxas de oxigênio baixar e o pulmão se comprometer, fui avisado: — tio, temos que levar o tio urgente para São Luís. Assim foi feito.
No trajeto de Gonçalves Dias pra cá, feito em alta velocidade, e, ainda assim consumiu umas três ou quatro “balas” de oxigênio até ser internado em um hospital da capital. Durante todo o tempo meu sobrinho e meu irmão, que são médicos, receberam meu pedido para que não se afastassem dele por motivo algum.
Enquanto via sua excelência fazer uma imitação grotesca de alguém morrendo pela falta de oxigênio, lembrei-me do sofrimento do meu irmão e a angústia que acometeu a todos nós, seus irmãos, sobrinhos e amigos, sem saber se ele sobreviveria ou não.
Nancy, Adalberto, Gecimon, Verde e tantos outros que pereceram em uma conta que já chega a quase 700 mil vidas perdidas para a pandemia, não são apenas números.
Durante esse tempo todo sua excelência não se dignou a expressar um único sentimento de empatia pelas vítimas ou pela dor dos seus familiares e amigos.
Nunca foi capaz de encerrar um passeio de fim de semana para hipotecar solidariedade.
Fez, ao contrário, foi debochar, campanha contra a vacinação – com grave reflexo, inclusive, nas campanhas de vacinação regular –, “torcer contra o sucesso” de determinado imunizante, por sentimento politiqueiro e mesquinho.
Ainda que, diferente do que apontam diversos estudos científicos, seu comportamento não tenha sido causador de nenhuma morte, apenas o deboche, o menosprezo, a falta de solidariedade, já seriam suficientes para votar contra sua pretensão de continuar dirigindo o país.
Com todo respeito que tenho pelos que pensam diferente, o solidariedade aos que pereceram, reforça, o imperativo ético para que faça isso.
Agora mesmo vejo sua excelência, com olhar compungido, em comerciais de campanha “pedir perdão” por seu comportamento, cuja definição mais branda seria abjeto.
A minha fé imporia a obrigação de perdoar, entretanto, para que haja o perdão é necessário que o arrependimento seja verdadeiro, e não é isso que vemos.
Os que conhecem a Palavra melhor do que eu, sabem que o próprio Jesus Cristo disse: “vás e não peques mais”.
Se, enquanto pede perdão, o pecador continua a incorrer nos mesmos pecados, não merece o perdão.
Foi o que vimos no tristemente famoso episódio do “pintou um clima”.
A frase de sua excelência foi: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas; de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. 'Posso entrar na tua casa?' Entrei. Tinha umas 15, 20 meninas, num sábado de manhã, se arrumando —todas venezuelanas. E eu pergunto: Meninas bonitinhas, 14, 15 anos se arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida. Você quer isso para a tua filha, que está nos ouvindo aqui agora. E como chegou neste ponto? Escolhas erradas".
Não bastasse a gravidade inconcebível de um quase septuagenário dizer que “pintou um clima” referindo-se a uma adolescente de 14 ou 15 anos, o episódio que tentou explorar é uma mentira grotesca.
As garotas que viu arrumadas, e por quem “pintou um clima”, não estavam se prostituindo, como disse; a casa onde entrou, não era uma casa de prostituição e, sim, uma ação social de acolhimento.
O desejo de fazer exploração política ao invés de agir como um chefe de nação responsável ou mesmo um pai de família, o fez descambar, mais uma vez, para a agressão aqueles a quem deveria e teria o dever de acolher.
Tudo que vivemos nos últimos anos e mesmo episódios recentes, não podem ser normalizados.
Não, não tem perdão.
Um ditado do meu interior diz: “língua não é osso mas quebra caroço”.
Abdon C. Marinho é advogado.