SARNEY, CAFETEIRA E UMA GRATIDÃO FINAL.
Por Abdon C. Marinho*.
SOBRE a mesa de centro na minha sala no escritório da Rua dos Pinheiros repousa um livro que conta a história do Projeto Reviver – a recuperação do centro histórico de São Luís, empreendida durante o governo Cafeteira (1987-1990) –, que me foi dado pelo próprio ex-governador quando trabalhei na sua campanha ao governo do estado no ano de 1994 – quase uma relíquia.
O livro estava guardado em uma gaveta e por um motivo qualquer o trouxe para fazer “companhia” a um outro livro, este sobre os lençóis maranhenses.
Em um dia da semana, atendia o amigo, o prefeito de Luis Domingues, Gilberto Braga, quando adentra a sala outro amigo, o ex-prefeito de Bequimão, José Martins.
Enquanto aguarda, Martins começa folhear o livro e acabamos, os três, numa única conversa, recordando alguns fatos pitorescos de Cafeteira e da política do estado como um todo. Martins acabou por tocar na reaproximação entre o ex-presidente Sarney com ex-governador, fato ocorrido a partir das eleições de 2006, quando esse último elegeu-se senador na chapa com Roseana Sarney, que fora sua adversária nas eleições de 1994 (aquela que ganhamos); e na de 1998 (aquela que perdemos). Como testemunha ocular da história, estava em ambas.
Em 22 de maio de 2018, por ocasião da extinção do ex-governador, ocorrida no dia 13 daquele mês, escrevi sobre o que vivi naquelas duas campanhas eleitorais e nos seus desdobramentos, chegando, já alguns parágrafos antes quadra final do texto, a fazer referência a essa reaproximação entre os dois políticos e o desabafo feito por Cafeteira na última vez que estivemos juntos.
Como já disse em textos anteriores, conheci pessoalmente Cafeteira por ocasião da eleição estadual de 1994, já trabalhava com Juarez Medeiros, que foi candidato a vice-governador na chapa com ele, e fui chamado para, junto com mais duas ou três pessoas, tomar conta daquela campanha eleitoral.
Olhando com os olhos de hoje (na época tinha 25 anos) fico imaginando como uma campanha eleitoral sem recursos, sem sustentação política consistente, com tão poucas pessoas no seu comando chegou tão longe enfrentando toda a força política de um governo estadual, federal, poder dos meios de comunicação todos nas mãos dos adversários (o grupo Mirante, da família da candidata e com penetração em todo o estado e a grupo Difusora, da família do então governador, também apoiando Roseana).
Acredito que nunca antes – nem depois –, testemunhamos uma campanha como aquela. Foi o que se pode chamar de uma epopeia. Cafeteira tinha um apelo político e popular naquela eleição que nunca vi depois, nem mesmo na vitória de Jackson Lago, em 2006 ou na de Flávio Dino, em 2014, viu-se algo comparável ao desejo de mudança experimentado em 1994.
Quando, ao som da música de campanha “liberdade é o respeito pelo direito é a chama em nosso peito …” e Frank Matos anunciava a fala do candidato, sentia-se um magnetismo envolvendo a multidão nos comícios.
O comitê, no Sitio Leal, era o local onde ficava todos os dias, mantendo contato através de um telefone fixo com as lideranças políticas do interior e para nos informamos do que vinha acontecendo: as pressões políticas, os abusos, a retirada de propaganda eleitoral por “falta de energia” ou por “defeito técnico”.
Imaginem que se ainda hoje o Maranhão é um estado atrasado, há trinta anos era muito mais, com os “donos do poder” político mandando de uma forma muito mais acintosa.
O poder era exercido com tanta força que mesmo antes de inventarem as chamadas “fakes News”, o Maranhão teve uma fake news – e séria. Às vésperas do segundo turno das eleições, inventou-se que Cafeteira teria mandado matar um cidadão por nome de Reis Pacheco (já contei essa história em textos anteriores. O fato é que só conseguiu-se provar a farsa no dia do último programa eleitoral, que não chegou a ser visto em todo estado pelos problemas já relatados acima, falta de energia, emissoras de rádio e televisão fora do ar e tudo mais.
Apesar de tudo é certo que Cafeteira venceu a eleição de 1994 – e não levou.
Um amigo que testemunhou todos aqueles fatos certa vez desabafou: — Abdon, se eu fosse Cafeteira toda vez que o Sarney entrasse no plenário do Senado eu o chamaria de canalha.
Naquela época tanto Sarney quanto Cafeteira tinham ainda pela frente quatro anos de mandato como senador da República, o primeiro pelo Amapá e o segundo pelo Maranhão.
A relação dos dois, exceto pelo “armistício” ocorrido em 1986 – na esteira da eleição Tancredo/Sarney –, e que durou até 1990, sempre foi de antagonismo, que vinha desde o início da carreira política de ambos, nos idos dos anos cinquenta.
Os fatos da eleição de 1994, teria azedado de vez o que nunca foi bom.
Em 1998, Cafeteira disputou o governo estadual novamente contra Roseana Sarney e dessa fez perdeu, ficando sem mandato.
Foi a segunda eleição em que trabalhei com ele, dessa vez o nosso comitê foi no antigo palacete dos Archer, na praça Gonçalves Dias – com a estrutura do Sitio Leal funcionando como apoio.
Cada um cuidando de seus afazeres e sendo eu alguém que não é dado a visitar ninguém ou a frequentar a “sociedade”, tive pouco contato com Cafeteira nos anos seguintes.
No final de 2006 – ou início de 2007 –, recebo uma ligação de Chico Branco, um amigo comum de ambos: — Abdon, o chefe quer falar contigo. Estamos passando aí.
Não demorou muito lá estavam Cafeteira e Chico Branco na minha frente, recordando os bons momentos que passamos juntos nas duas campanhas eleitorais.
O propósito da visita era que Cafeteira queria que assumisse a defesa dele numa ação eleitoral. Alguém entraram contra ele sob a alegação de que os gastos dele naquela campanha seriam incompatíveis, ou seja, ele não teria “gastado” dinheiro suficiente ao número de votos que teve.
Com o bom humor de sempre ele confidenciou: — poxa, Abdon, nem isso que consta da prestação de contas foi efetivamente gasto, fiz minha campanha toda casada com a campanha da branca.
Naquela eleição, 2006, trabalhei com Aderson Lago, no primeiro turno e, no segundo turno, com Jackson Lago, fato público. Cafeteira fora eleito na chapa com Roseana Sarney.
Conversamos sobre essas circunstâncias, tendo ele dito que confiava em mim para sua defesa. Foi o que fizemos. Honorários na base da amizade.
Tempos depois, processo vencido, acho que quase no fim do mandato mas já, certamente, decorrido mais da metade, recebo outra ligação de Chico Branco: — Abdon, está no escritório? Vou passar aí com o chefe.
A prefeitura da capital estava fazendo umas reformas nas rotatórias e removendo os famosos corações de concreto característicos das obras que realizara quando foi governador. Diretamente ou através de alguém ele tomou conhecimento e não gostou da atitude do gestor municipal que estava substituindo os ditos corações por alguns arranjos artísticos.
Foi naquela visita que Cafeteira revelou-me a enorme gratidão por Sarney depois de uma vida inteira de rusgas e desavenças. Não foi por causa da eleição de 2006, que lhe possibilitou voltar ao Senado numa articulação de Sarney.
A gratidão nos revelada foi pelo fato de Sarney ter ficado ao seu lado quando do incidente em que quase morreu.
Nas suas palavras, Sarney teria sido seu “anjo da guarda”: — meu filho, eu estava ali, naquela cama ou maca, nu, apenas enrolado com um lençol e Sarney estava lá segurando minha mão.
Naquela altura da vida Cafeteira já com quase noventa anos – se já não passava disso –, ainda assim ou talvez por conta disso, era capaz de emocionar-se com um gesto de solidariedade e amizade de um eterno desafeto.
A revelação causou-me uma sensação “diferente”.
Não conheço o ex-presidente Sarney, mas, pelo menos em duas campanhas eleitorais, tive estreito contato com o ex-governador Cafeteira, a ponto de saber que aquela gratidão ali revelada era fruto de uma sincera emoção.
Cafeteira deixou o escritório me dizendo que não tinha intenção de concorrer a uma reeleição, e riu. Acho que foi a última vez que estive pessoalmente com ele.
Na conversa com José Martins e Gilberto Braga, o primeiro revelou ter ouvido do próprio Cafeteira, em uma reunião em Brasília, salvo engano, na casa de Roseana, declaração semelhante.
Antes de saírem recordamos outros causos do ex-governador.
Acabei por revelar que dia desses ia escrever sobre o mesmo depois de uma matéria que vi em um jornal ou site de que determinado estado havia pintado todos os veículos que atendem as delegacias das mulheres de rosa, segundo os autores da ideia, para causar constrangimento nos cidadãos que cometem violência doméstica. Dizia que nada daquilo era novidade, pois Cafeteira quando assumiu em 1997, mandou pintar foi toda a frota de veículos do estado de “amarelo-abóbora” para evitar o mal uso de tais veículos.
Depois de tudo, devo dizer que foram experiências memoráveis. Foi mágico ter vivido tudo aquilo.
Abdon C. Marinho é advogado.