NO FIM FALTARÁ LAMA.
Por Abdon C. Marinho*.
TODOS que me conhecem sabem o quanto sou admirador de charges. Acho o chargista um dos artistas mais completos, pois conseguem sintetizar uma ideia, um momento político ou social, um sentimento com apenas uma imagem, um traço. Sempre que encontro uma interessante salvo-a nos meus arquivos.
A charge que ilustra esse texto encontrei em meados do ano passado. A imagem do então presidente dentro da ampulheta mostrando que a figura do mesmo, a medida que o tempo passava no medidor de tempo que é milenar ferramenta se transformava em um presidiário, independente de qualquer inclinação política, achei formidável.
Há pouco mais de um ano (mas precisamente no domingo, 21 de agosto de 2022), depois que o então presidente disse que se não ganhasse a eleição seria preso (ou morto, pois reagiria) surgiu a oportunidade de utilização da charge em um textão, escrevi: “Um candidato entre o Planalto e a Papuda?”.
O texto você confere no nosso site, na data já referida acima.
Um ano depois, a imagem visualizada pelo autor da charge e que interroguei no texto não é apenas uma situação hipotética, na verdade é como se o “camburão” da polícia federal já estivesse na esquina – na verdade já esteve até na porta do ex-presidente em missões de coleta de provas.
Em tal contexto, talvez o único que fez – não um exercício de previsão –, mas uma constatação do viria acontecer de fato tenha sido o ex-presidente Bolsonaro. Ao dizer que com a derrota teria um encontro com a prisão ou a morte, sabia plenamente o que estava acontecendo e, ele próprio, diretamente ou por terceiros, fazendo.
A cada dia, a cada nova revelação – e o agosto tem sido prodigiosa nelas –, a patuleia vai tomando conhecimento que as palavras não eram apenas “força de expressão”.
Vejamos o “caso das jóias”. O tenente coronel Mauro Cid, que já coleciona quase trinta horas de depoimentos à Polícia Federal, do qual vamos tendo conhecimento de fragmentos, apenas, vai deixando claro que ele e todos no entorno presidencial sabiam que “malfeitos” estavam em andamento e que eles próprios eram sujeitos ativos dos mesmos.
Ainda que sobrassem dúvidas quanto à legalidade de algumas condutas, qualquer um com apenas dois neurônios em funcionamento deveria ter a noção de que era “feio” o que estavam fazendo.
Mesmo nas relações estritamente privadas não é de “bom tom” você receber presente de um amigo ou parceiro de negócios e lavá-lo à venda. É uma falta de consideração, de ética, de compostura.
Mas, imagine você receber um presente – diretamente ou por interposta pessoa –, representando o seu país, o seu estado e o levar à venda numa casa de leilões ou em um mercado de pulgas.
Aqui, sem antecipar qualquer juízo de valor, ao meu sentir é uma falta de consideração com a nação que presenteou e com o nosso próprio país, pois é como se estivéssemos (a nação) contando moedas para sobreviver.
E, vai-se além, mesmo que se tivesse qualquer dúvida quanto à propriedade do presente, como quer adotar como linha de defesa o ex-presidente, os presentes foram dados ao país, representado por seu presidente, ministros ou outros agentes.
Como sei disso? Resposta: me perguntando quantos presentes caros, joias em ouro e diamantes esses mesmos agentes receberam depois que deixaram os cargos públicos que ocupavam.
Pois é, se não receberam nada depois de deixarem os cargos é porque o presente não era para eles e sim para o cargo e funções que ocupavam.
Na minha já longeva carreira jurídica, toda ela no setor público, vejo muitos ex-gestores de várias esferas de poder se ressentirem pelo fato de convites para festas, solenidades e rapapés terem escasseados ou desaparecidos. Demoram a “caírem na real” e a entenderem que tudo aquilo não era para eles, era para os cargos que ocupavam. Por estas paragens, conta a lenda, que determinado advogado que era convidado para as festas dos bacanas, foi alçado ao cargo de desembargador e com ele os convites começaram a “chover”. Sabendo que tal bajulação não era para ele, aos convites que recebia, mandava, no carro oficial, as vestes talares do cargo aos eventos com um bilhete: “como o convite não é para mim e sim para o cargo, seguem as vestes do mesmo”. Deve ser lenda.
O mesmo raciocínio serve para os presentes ofertados a um governante, seja ele municipal, estadual ou federal.
Os gestores públicos deveriam adotar como princípio a seguinte máxima: antes do cargo eu recebia? Depois do cargo continuarei a receber? Com a resposta não, já sabe que aquilo que recebeu não era para ele.
Qualquer agente público que recebe para si um presente valioso, tal mimo deve ser chamado por outro nome, que, inclusive, tem tipificação penal: suborno.
No caso dos supostos “presentes” que o ex-presidente reclama a propriedade, sobra uma outra curiosidade e desmitificação: existência de governantes árabes bonzinhos.
Vejam que coisa, passamos a vida inteira alimentando preconceitos de que esses povos teriam um excessivo apego ao “vil metal”, mas, de repente, descobrimos que são capazes de doarem milhões de dólares em joias a pessoas que mal conhecem.
O enredo até parece um conto de “As mil e uma noites”.
Já o enredo do resto da história está mesmo para comédia pastelão recheada de crimes diversos praticados por palermas. Ou nas palavras de um dos envolvidos, capturadas pela PF: “nunca vi gente tão ignorante”.
Me digam se pessoas sensatas, nos píncaros dos poderes republicanos agiriam assim: você vai a uma nação estrangeira recebe um presente valioso – que sabe, certamente, pertencer ao cargo que ocupa –, entra no país sem declarar o ingresso do bem, depois você viaja novamente levando o presente que ganhou, novamente não declara a saída do bem, chegando no destino você mobiliza servidores públicos, inclusive com altas patentes das Forças Armadas, para percorrerem lojas e casas de leilões para venderem os ditos presentes.
Imagino, no palácio, a organização de uma viagem internacional da maior autoridade da República: — coronel fulano, na próxima semana vamos aos Estados Unidos, verifica aí no acervo do palácio os presentes que poderemos levar “para dá um jeito por lá”.
Depois de vendidos e apurados os valores estes eram reintroduzidos de forma clandestina no país através de contas de terceiros.
Como querem que compreendamos tal tipo de vexame? Repito, ainda que sobrasse legalidade, é algo difícil de digerir. Então tínhamos um governo caça-níqueis?
Será que a ninguém socorria a ideia de dizer: — rapaz isso que estamos fazendo é loucura?
Observem que nesse texto apenas tratamos de um item de um “prontuário” que, pelo que se desenha, será bem extenso. Além da joias presenteadas, já surgem “boatos” sobre a compra de mansões no estrangeiro em nome de “laranjas”, as revelações do hacker em uma CPI - que precisam ser provadas, mas que a polícia federal não deverá ter dificuldade em saber se verdadeiras ou não –, e tantas outras coisas que, certamente, virão à luz mais cedo ou mais tarde.
O caso que vai se descortinando, como dizia um saudoso ministro do STF, é daqueles em que se puxa uma pena e vem a galinha inteira, só que neste, vem o galinheiro inteiro.
O que nos resta é aguardar, com um balde pipocas e um copo de suco, os próximos capítulos.
Ao término de tudo, o temor é que falte lama.
*Abdon C. Marinho é advogado.