UMA NAÇÃO SEM BÚSSOLA MORAL.
Por Abdon C. Marinho.
QUANDO COMECEI a escrever há mais de uma década – digo escrever “profissionalmente” –, tinha por propósito contribuir, pelo menos com minhas ideias, com o crescimento do país, fazendo-o um lugar melhor é uma janela de futuro para as gerações vindouras.
Depois de todos esses anos, uma sensação de fracasso me acompanha. Tenho a impressão de que nada do que se possa dizer, insistir ou ponderar terá qualquer efeito para uma nação que parece ter perdido sua bússola moral. Nada além dos próprios interesses dos “donos” do poder guiará a nação.
Agora mesmo recebo a notícia de que o Congresso Nacional prepara uma série de medidas visando anistiar os partidos e políticos que descumpriram a lei no que refere as cotas para mulheres, negros ou mal gastaram os recursos públicos oriundos dos fundos partidários, eleitorais e tantos outros – carros, aviões, mansões , piscinas e tudo mais foi o destino de recursos que deveriam servir para alavancar a participação de mulheres e negros na política tornando a representação da nação mais plural.
A ideia dos nossos “líderes” é, pelo que li, “anistiar” todos os “malfeitos” ocorridos, inclusive, devolvendo os mandados perdidos em razão do descumprimento da lei e, noutra frente, tornar tais regras mais flexíveis.
Outra coisa que desejam é poderem gastar os recursos dos contribuintes com toda liberdade do mundo. Fingem que prestaram contas e tudo fica bem.
As noticias dão conta que o “acórdão” já está sacramentado. Um ou outro parlamentar talvez esboce algum protesto mas nada que possa mudar o curso das coisas.
Na estratégia de tornar tudo ainda mais palatável aqueles que poderiam ou teriam alguma força política para dizer algo, fizeram incluir regras favoráveis, na reforma tributária, aos partidos políticos, aos sindicatos e as igrejas.
Sobra-me a impressão de que não temos um projeto de nação, mas um projeto de fracasso institucional.
Vejam que as leis brasileiras já são excessivamente lenientes com os poderosos, em tudo, mas mesmo assim, firmes na ideia de que podem tudo, quando apanhados no descumprimento de alguma norma, “inventam” uma anistia que os livrem de aborrecimentos.
Só falta o Brasil adotar um sistema de legislação “fluida”, ou seja, que pode ser aplicada ou não, conforme o gosto do “freguês”.
O Brasil demorou décadas para garantir o direito de participação feminina na política – que ainda é baixíssima –, e quando se estabelece uma legislação que estabelece cotas de participação nas eleições, não é nas casas parlamentares ou nos poderes da República, e se começa a cobrar o cumprimento da lei com reprimenda aos que a violaram, chamam uma anistia, mudam a lei para torná-la mais “flexível”.
Como iremos fazer do país uma nação igualitária?
Ainda hoje mulheres ganham bem menos que os homens para o exercício das mesmas atividades – tanto assim que até tem uma lei tratando disso e só agora o STF decidiu que não se pode invocar a defesa da honra nos crimes cometidos contra as mulheres – e são milhares todos os anos.
A mesma “flexibilidade” e anistia diversas querem aplicar em relação as cotas para a participação de negros no financiamento de campanhas eleitorais.
O Brasil é um país que possui uma população majoritariamente preta e parda, segundo os dados do IBGE, a despeito disso a participação desse seguimento na política nacional é restrita, seja no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores, nos poderes executivos de todos os níveis e, também, no judiciário.
Deveríamos era ter políticas públicas que incentivassem o fim e banimento de tais segregações.
O que temos, o que se desenha é justamente o contrário, querem “flexibilizar” as normas de financiamento de candidatos pretos e pardos e de candidaturas femininas.
Pelo andar da carruagem, pelo fim das punições, logo mais tornarão tais candidaturas “facultativas” e voltaremos algumas décadas para trás.
O Brasil “não cumpre o dever de casa” e inibe a participação dos seguimentos na vida política tornando-a um território da elite nacional.
Os dados do IBGE divulgados em 7 de julho último dizem que a educação de crianças e adolescentes pretas e pardas – que são a maioria na população brasileira –, encontra-se atrasada uma década em relação a educação de crianças brancas.
Como podemos imaginar que tais cidadãos tenham ascensão social se desde a infância a nação lhes roubam dez anos de vida?
Como imaginar que o acesso aos fundos eleitorais para disputar um mandato eletivo é um “privilégio” e por isso deve ser “flexibilizado”?
Os dados estão aí, à disposição de todos, principalmente daqueles que deveriam pensar em políticas públicas que tornem o país mais inclusivo.
A educação brasileira encontra-se atrasada mais de uma década em relação a outros países nas mesmas condições que o nosso. Logo, educação de pretos e pardos encontra-se, na verdade, com vinte anos de atraso. São vinte anos de atraso e não se faz nada para combater tal desigualdade.
A educação de que tratam as pesquisas e que efetivamente conta é a educação pública, aquela que é ofertada a todas as crianças do país de 7 a 14 anos e que não tem evoluído e possibilitado a ascensão social de todos por seus próprios méritos.
Antes dos “donos poder” agirem para anularem conquistas históricas de mulheres, pretos, pardos, indígenas e outras minorias do espectro multifacetado que compõem a população brasileira, deveriam, na verdade, eram buscar soluções para essa desigualdade que se mantém desde sempre no nosso país.
Os destinos do país não podem continuar unicamente nas mãos de políticos brancos e do sexo masculino pois não representam o povo brasileiro, aqueles que sofrem, na ponta, as consequências de suas decisões.
Mas, infelizmente, é isso que vem se desenhando com a “cumplicidade” de todos. Logo mais o país volta ao sistema de voto censitário que já fez muito sucesso nos idos de 1800.
A bússola moral do país entra em “curto” quando vemos um ministro do STF dizer que acordos de leniência firmado no curso da Lava Jato onde empresas confessaram delitos cometidos e até mesmo estão devolvendo parte do alcance, não valeram.
Durante dez anos de existência a operação Lava Jato apurou, confrontou provas e conseguiu recuperar já mais de seis bilhões de reais.
Se agora decide-se que nada disso “valeu”, a nação precisa formalizar um pedido de desculpas e devolver a eles os recursos que confessaram terem adquiridos como fruto de subornos, fraudes e tantos outros crimes.
Uma dúvida me assalta: se os réus confessos, condenados e “restituidores” do alheio são “inocentes” ou imunes as penas, quem são os verdadeiros culpados? Quando e por quais crimes responderão?
Em meio a tantos absurdos, eis que nos aparece o presidente, que na atual quadra mais parece um palpiteiro-geral da República, sugerindo que os votos dos ministros do STF sejam sigilosos. Aí a bússola moral da nação entra em pane.
Sou uma pessoa afeita ao debate, acho que em nome do bem comum é possível discutir, debater ideias, encontrar soluções para os problemas da sociedade.
Ocorre que o debate nacional, parece-me encoberto por cortinas de fumaça enquanto o que se busca, sem qualquer pudor, é a manutenção do status quo de uma elite que age para levar o país de volta ao regime feudal.
Os cidadãos de bem trabalham quase metade do ano só para pagar impostos enquanto a elite constituída pelos “donos do poder” os gastam “sem tomarem chegada”, como dizia um amigo.
Nada disso é novidade, Vieira, no seu “Sermão do Bom Ladrão”, dizia: “Não são só ladrões … os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam”.
É de perguntar-se: o que mudou de 1655, quando Vieira proferiu tal sermão para cá? Nada continuamos o punir com os rigores da lei os que furtam um pedaço de carne, os que roubam uma peça de rouba ou uns biscoitos, mas mantemos (com os nossos votos) aqueles que não têm quaisquer compromissos com os destinos do país e que usam dos poderes delegados pelo povo para enriquecerem cada vez mais, sem risco, sem medo e mudando a lei quando lhes convém.
Abdon C. Marinho é advogado.