O SUPREMO AMEAÇA A DEMOCRACIA.
Por Abdon Marinho.
JAMAIS pensei algum dia iria proferir uma assertiva tão dura. Mas o que dizer quando, em rede nacional, ministros da mais elevada Corte de Justiça do Brasil trocam acusações dignas de bares de pés-sujos e por pouco não partem para “as vias de fato”?
Já vem de longe a incapacidade de suas excelências cumprirem o elevadíssimo papel que lhe reserva a Constituição Federal e partirem para agressões mútuas que, não apenas envergonham a Justiça, ofendem o sentimento de nação dos cidadãos de bem que “ralam” a não mais poderem para sustentar o monumental Estado, que dentre outras coisas, garante as mordomias e privilégios injustificáveis da elite governante, inclusive da própria corte.
A Justiça, aprendi desde cedo, é a derradeira trincheira da cidadania. Sim, quando nada mais pudermos fazer para cessar uma injustiça, uma violação aos nossos direitos, nos restará bater às portas dos tribunais para que eles nos socorram.
E, se qualquer órgão da justiça tem tal significância, o Supremo Tribunal Federal, sua instância máxima, é a encarnação de todo esse sentimento, deve, ele e seus ministros, serem insuscetíveis de quaisquer críticas, possuírem, conforme mandamento constitucional, uma conduta ilibada. Aquela que qualquer dicionário define como “conduta limpa, correta, íntegra, com honra. Uma pessoa com idoneidade moral, honesta, que age sempre de acordo com a moral e os bons costumes”.
Como o cidadão deve sentir-se quando ouve em rede nacional de televisão e rádio, um ministro dizer que o outro é a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia e o outro retrucar pedindo que o detrator feche seu escritório de advocacia?
Em que republiqueta estamos onde um ministro diz que o outro é o mal, é um psicopata e é retorcido com a acusação de que continua atuando como advogado?
E vejam, que em cenas de pugilatos anteriores as referências foram, igualmente, do mesmo nível ou pior.
Se o que estar dito tiver algum fundo de verdade – e também se não for, pouco importa –, o cidadão tem todos os motivos do mundo para não confiar na sua instância máxima de Justiça, dai a razão da assertiva de que o Supremo, na quadra atual, representa uma ameaça a democracia brasileira.
Uma ameaça porque aos poucos e com o som histriônico dos picadeiros vai caindo no descrédito popular. Até porque, o vexame moral não alcança apenas os mais famosos contendores, se espalha por diversos outros.
Acredito que assistimos um momento horrível na credibilidade da Justiça. Não digo pior porque sempre estão na iminência de piorarem um pouco mais a já enxovalhada imagem da pobre senhora.
Infelizmente, pois não faz tanto tempo assim – talvez menos de um quarto de século –, ninguém ousava questionar uma decisão de um ministro do STF ou uma de suas decisões colegiadas, hoje é como se não tivesse importância alguma. Os poderosos, inclusive do crime organizado, chegaram à conclusão que os ministros do STF são “pressionáveis”, ou uma definição bem pior que essa, para o desalento da sociedade.
Vejam o caso do cumprimento provisório da pena após de esgotados os recursos de segunda instância.
O Supremo decidiu, ainda ontem, em termos jurídicos, em 2016, confirmando uma decisão de 2009, que tal possibilidade não ofenderia o princípio constitucional da presunção de inocência.
A decisão foi apertada, mas foi uma decisão do tribunal, caberia aos demais membros, ainda que ressalvando seu entendimento pessoal, manter a higidez da decisão colegiada.
Não é isso que tem ocorrido, os ministros colocam seu posicionamento pessoal, sua fração de poder, acima da decisão colegiada.
Em outras palavras: a liberdade dos cidadãos passou a ser uma loteria, dependendo de onde seu pedido “cair”, ministro ou turma, pode ficar livre ou não.
Temos diante de nós o tribunal cuja missão precípua é a guarda Constituição, como o primeiro a desrespeita-la, principalmente naquela que é sua parte mais importante: dos direitos e garantias fundamentais, o Título II.
Logo no seu artigo 5º., está assentado: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.
Com efeito, a balbúrdia que tomou conta do STF, retira dos brasileiros a sua situação principal: a igualdade perante a lei. Francisco e José são iguais perante a lei mas se forem condenados em segunda instância e seus pedidos de liberdade “caírem”, nas mãos dos ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, respectivamente, apenas como exemplo, cessa aí sua “igualdade”, um esperará o julgamento de todos e quaisquer recursos enquanto que o outro irá ou continuará, sem dó ou piedade, no cárcere.
Existe situação pior que esta? Existe! A decisão ao gosto do freguês.
Vejam o caso do senhor Luiz Inácio Lula da Silva. O indigitado, por coincidência ex-presidente da República, foi investigado, indiciado, denunciado, julgado e condenado, em primeira e segunda instância e, conforme o entendimento do STF, após o julgamento dos derradeiros apelos no Tribunal Regional Federal da Quarta Região, deverá ou deveria seguir para o cumprimento da pena de 12 anos e um mês que lhe foi aplicada.
O que temos visto desde a confirmação da condenação em segunda instância do ex-presidente é todo tipo de gente, até mesmo réus, exercerem todo o tipo de pressão sobre a Suprema Corte do país, para que ela mude o seu entendimento sobre o cumprimento provisório da pena. E, pior que isso, mesmo os integrantes do tribunal investidos nesta missão.
Vejam, o envenenamento maior do STF a culminar com a sua desmoralização perante a sociedade brasileira, não é para o tribunal voltar a discutir o assunto, o que já não seria recomendável, tão pouco tempo da decisão anterior, o que está por trás de todo esse engodo é mudar o entendimento e permitir que o ex-presidente fique impune pelos crimes aos quais já foi condenado, e pelas demais condenações que não tardarão a ocorrer – com mais de setenta anos e com tanta gente disposta a livrá-lo do alcance da lei, além da proverbial lentidão da justiça nacional, estou certo que terminará seus dias, encanecendo da sociedade brasileira, livre, leve e solto.
O meu entendimento pessoal – e escrevi sobre isso por ocasião do julgamento de 2016 –, é que o encarceramento a partir da segunda instância estaria em dissonância com o espírito do legislador constituinte, qual seja, violaria a presunção de inocência. E, conhecendo a Justiça brasileira, via como um risco aos direitos dos cidadãos.
Mas, embora irresignado, quedei-me inerte em respeito à decisão Corte Suprema.
Agora, diante de tamanho acinte à sociedade brasileira, entendo que o Supremo está às portas da decretação de sua irrelevância.
Estamos diante de ministros que se predispõem a mudar o entendimento da maior instância da Justiça para atender uma pessoa, para isso não importando a imensa insegurança jurídica que levará o país.
Sim, como a decisão original é de 2009 e a confirmação de 2016, temos diversos cidadãos cumprindo pena, quando, tal qual o ex-presidente Lula, poderiam nunca conhecer as dependências do sistema prisional, seja pelo decurso do prazo, seja pelo perecimento dos apenados, seja pela generosa prescrição das penas no país.
Ora, caso decidam pela mudança de entendimento (me recuso acreditar que cometerão o suicídio coletivo), vão, junto com a decisão sob medida, determinar, de ofício, que todos que estejam na mesma situação sejam beneficiados? Mesmo os que não têm recursos pendentes? E, o que farão com os que já cumpriram suas penas, que foram privados da liberdade, serão indenizados?
Talvez fique menos feio que uma decisão para atender uma única pessoa.
Caso, o pior venha acontecer – e digo isso pensando no futuro do país e suas instituições até porque o infortúnio de ninguém me traz prazer –, serei forçado a concordar com o condenado Luiz Inácio Lula da Silva, quando apanhado em um grampo autorizado pela Justiça: “— temos uma Suprema Corte acovardada”.
Mas encerro acreditando que o STF, apesar de todos os vexames que temos assistido, não vai dar o primeiro passo para o Brasil se transformar numa Venezuela com comida e papel higiênico, como bem disse um incrédulo amigo, recentemente.
Abdon Marinho é advogado.