TIROS EM MANÁGUA, SILÊNCIO NO RIO DE JANEIRO.
Por Abdon Marinho.
POUCO mais de 120 dias é o intervalo de tempo ocorrido entre a execução da vereadora Marielle Franco (Psol), de 38 anos, ocorrida no dia 14 de março passado, no Rio de Janeiro, Brasil e a execução da médica Raynéia Gabrielle Lima, de 31 anos, assassinada na noite da última segunda-feira, 23 de julho, em Manágua, capital da Nicarágua.
Tão perto. Tão longe. Tão semelhante. Tão distinto.
A impressão é que os dois fatos ao mesmo tempo tão semelhantes e próximos no tempo, ocorreram com séculos de distância, num inimaginável espaço físico, como se fossem em galáxias diferentes.
Com razão, por ocasião dos assassinatos da vereadora Marielle e do motorista Anderson Gomes, tivemos um clamor popular, com ampla e irrestrita cobertura da mídia. Tivemos, sobretudo, as manifestações dos partidos políticos e dos chamados movimentos sociais clamando, repito, com razão, pela elucidação do crime, com a punição dos culpados.
Tais partidos políticos e movimentos sociais acionaram os movimentos de direitos humanos do país e do exterior contra a execução das vítimas. Movimentos de defesa das mulheres fizeram – e ainda fazem – inúmeros protestos clamando por Justiça.
Órgãos internacionais, como a Anistia Internacional, fizeram velados e explícitos protestos contra as autoridades brasileiras, questionando os mecanismos e eficácia da polícia brasileira na elucidação do crime – até hoje fazem isso.
Por mais horroroso que possa parecer, o grande “sonho de consumo” de muitos dos puxaram e puxam os protestos pela elucidação do crime que vitimou a vereadora carioca era encontrar alguma responsabilidade, ainda que indireta, que pudessem atribuir a responsabilidade pelo crime ao governo “golpista de Temer” e seus aliados. Mais que a elucidação em si, o respeito pela vida perdida, muitos buscavam uma pauta.
Vejam, entendo que todo crime deva ser elucidado e os responsáveis punidos com rigor. A exceção de certos exageros e a torpe tentativa de se tentar politizar um assassinato, uma vida que foi perdida, a sociedade tem o direito e, também, o dever de cobrar soluções das autoridades e exigir a punição dos responsáveis.
Dito isso, soa incompreensível que os mesmos partidos, os mesmos movimentos, os mesmos coletivos, os mesmos organismos nacionais e internacionais que se mobilizaram e foram às ruas dias a fio em quase todas as capitais do país por ocasião do assassinato da vereadora Marielle, pouco ou nada façam em relação ao assassinato da médica pernambucana Raynéia Lima, ocorrido em Manágua, na Nicarágua.
No caso da presente execução, diferente do ocorrido no caso da vereadora, temos como certo que o mesmo ocorreu na esteira da violência provocada pelo governo daquele país que já ceifou quase quatrocentas vidas em poucos meses, sendo a brasileira mais uma vítima dos grupos paramilitares que assombram a população civil daquela nação para manutenção de um regime que já perdeu a legitimidade.
Os testemunhos de fontes insuspeitas, inclusive os reiterados depoimentos do reitor da universidade onde estudava a brasileira, apontam como responsável pela execução da médica – e de tantos outros cidadãos –, o governo de Manágua.
Pois é, estranhamente os tiros que ceifaram a vida de uma jovem é promissora médica, que muito, certamente, iria fazer pela população brasileira, não despertaram qualquer indignação dos mesmos valentes que tanto protestaram (com razão) diante do assassinato da vereadora carioca.
Arrisco dizer que manifestaram mais indignação com a pintura de um cavalinho branco numa colônia de férias por umas crianças num duvidoso trabalho de interação com o animal do que com o assassinato de uma cidadã brasileira.
Os partidos políticos que foram às ruas há cento e vinte dias, emitem notas cínicas e dúbias ou demonstram claramente o apoio ao regime que em curto espaço de tempo já executou mais cidadãos civis daquele país – e agora uma brasileira –, do que a ditadura militar em 21 anos de mando no Brasil. Com o diferencial de que muitas das vítimas da ditadura brasileira pereceram em confrontos armados e não em cruéis execuções como vem ocorrendo no país centro americano.
Embora não seja surpreendente que se comportem assim, que apoiem claramente a carnificina que o regime de Daniel Ortega tem promovido, nunca estamos preparados para tamanha degradação moral e ética.
As vidas dos quase quatrocentos mortos não interessam? A vida da mulher brasileira não importa? Cadê os cartazes de protestos? Cadê os gritos de presente! Cadê os slogans “mexeu com uma, mexeu com todas”? Era de mentira? Só valia/vale para as aliadas e alinhadas politicamente as causas que defendem? As demais mulheres podem ser executadas em praça pública?
Estranhamente, o único comportamento razoável e lúcido veio do governo “golpista”, que não “engoliu” a versão vendida pelo governo nicaraguense de que a brasileira teria sido vítima de um crime aleatório. Versão essa rejeitada por todas pessoas sérias e aceita como verdade absoluta por muitos partidos e movimentos sociais brasileiros. Fingir ou ignorar que houve um brutal crime e quem é o responsável por ele, isso que fizeram, isso que fazem. Uma vergonha! Um horror!
Vivo mil anos e não me acostumarei com este comportamento seletivo, esse cinismo desgraçado.
Eram sinceros quando protestavam por justiça para Marielle? Quando cobravam empenho das autoridades na elucidação do crime? Raynéia também não merece justiça? Por que silenciam agora diante de um claro homicídio praticado por uma ditadura corrupta? O que se esconde por trás do silêncio em relação à bárbara execução ocorrida em Manágua?
Em pouco mais de cento e vinte dias duas mulheres brasileiras foram covardemente executadas. A primeira desconfia-se das motivações e de quem sejam os criminosos, desperta todo tipo de protestos dos partidos políticos, movimentos e organismos, tanto no Brasil quanto no estrangeiro. A segunda, igualmente assassinada sabe-se os motivos e os grupos criminosos apoiados por um governo corrupto e truculento, para esta o silêncio, nada de protestos, a indiferença covarde e o apoio explícito aos assassinos.
Qual a diferença entre estas duas mulheres igualmente executadas e retiradas dos seios de suas famílias e seus amigos? Qual a distância entre protestos provocados pelos estampidos do Rio de Janeiro e o obsequioso silêncio pelos estampidos de Manágua?
Só não acredito que os tiros que assassinaram Marielle, no Rio de Janeiro, e os que executaram Raynéia, em Manágua, atingiram – e mataram –, a vergonha destes partidos e movimentos, porque, estou certo que, se vergonha tiveram algum dia, perderam há muito tempo.
Abdon Marinho é advogado.