CINQUENTA ANOS ESSA NOITE – LEMBRANÇAS E SAUDADE.
Por Abdon C. Marinho*.
VOLTEI ao Centro Novo, minha aldeia originária.
O aniversário de cinquenta anos da partida de minha mãe para o outro plano me trouxe até aqui. Uma busca para reavivar as memórias, sentir os mesmos cheiros da infância que tive é que foi marcada por acontecimentos tão trágicos.
A velha estrada – praticamente um caminho –, ligando os municípios de Governador Archer e Gonçalves Dias deu lugar a uma rodovia asfaltada, larga e que cortou morros e serras, tornando a distância bem mais curta; cortou também os terreiros das casas onde colocávamos as cadeiras para conversar ou fazer alguma atividade coletiva, como debulhar milho ou feijão das roças que ficavam próximas onde cultivávamos “de tudo”.
Passando de carro com o meu sobrinho-neto, vi que já são poucas as casas que não estão cercadas por muros ou mesmo cercas, confinando a estrada e os espaços por onde andávamos e corríamos (?) livremente.
Reduzimos a velocidade ao passar pelo o local onde ficava a velha casa onde nasci (e onde nasceu quase todos os meus irmãos pelas mãos de uma parteira da família, a esposa de tio Antônio, o mais velho dos irmãos de meu pai), nada restou.
Era uma casa simples, muito simples, mas, ao menos aos olhos de “eu, menino” parecia grande, com alguns quartos, pois a família já era grande e tinha ainda minha vó, que chamávamos titia, que viuvez foi morar conosco; alguns depósitos, onde papai guardava o arroz de sua produção e o que comprava “na folha” de outros produtores e que íamos buscar em burros diretamente nas roças; salas, de chão batido, uma, como sala de estar, onde ficava o oratório de mamãe, sua máquina de costura; o rádio estilo jabuti, algumas “cadeiras de macarrão”, tamboretes, e, também, das minhas primeiras lembranças, o espaço onde minha espalhou sobre um encerado um colcha de veludo onde eu poderia ficar sem pegar “friagem”, depois de quase morrer em consequência da pólio; ainda, cozinha com jirau para os fundos onde se mantinha uma criação de porcos e galinhas soltas.
À direita da casa, de quem olhasse da estrada, pontificava um flamboyant, ao qual chamávamos de “sombrião” – de tal árvore veio a ficção de que se sua altura ultrapassasse a da cumeeira da casa, seus proprietários morreriam, durante anos tal sentimento me acompanhou; à esquerda, ficava o curral onde bois e vacas eram recolhidos à noite.
Na frente da casa um outro depósito para se guardar arroz, um pouco mais adiante a casa dos “Bizungas” e, mais adiante, a casa de tia Malfisia, a mais velha das irmãs de meu pai. Entre a casa dos “Bizungas” e a de tia Malfisia, ficava a casa da prima Ciça, sua filha. Já –a “conheci” viúva, morando nesta casa com a outro filha, prima Salete.
Logo depois do curral descia uma ladeira íngreme com destino ao Igarapé de Pedrinhas que usamos para “escorregar” usando conchas de palmeiras como carrinhos de rolimã.
Olhei no entorno, nada mais estava lá – e já não estava lá há muito tempo –, apenas o igarapé, já maltratado pelo tempo e a serra, onde brincava de “passarinhar”, ainda restam.
Mas, tudo, pelo menos para mim, já deixara de existir há muito tempo.
Foi em doze de agosto de 1973, um domingo, o último dia de convivência com a minha mãe. Ainda no começo da noite ela começou com as “dores do parto”. No quarto simples, que lembro ter um baú, o cofre de meu pai, em uma cama simples ela deitada conversava com meu tipo Praxedes, seu irmão, que fora casado com minha tia Zefa, irmã de meu pai, que falecera, ainda confiando na lembrança, de parto, há menos de um ano. Enquanto conversavam, eu fazia todo tipo de peraltice para chamar a atenção, hora corria para um lado, hora corria para o outro, hora subia na sua cama, hora prendia os dedinhos na dobradiça do cofre …
Com olhar compassivo – só muito depois fui compreender isso –, ela tudo assistia e dizia ao tio Praxedes: — um dia meu filho será um doutor para cuidar dos seus irmãos.
Foi assim até a hora que alguém levou-me para dormir no quarto que dividia com a “titia”. Talvez com a rede de Ana Cleide, a caçula das mulheres ao lado, com dois anos e meio ao lado. Acordei no meio da noite com o silêncio impenetrável daqueles dias sendo cortado pelo clamor, por diversos clamores. Da minha rede, ouvia o vozes e muito choro, muito choro.
Não sei quanto tempo fiquei lá, só ouvindo choros e sem saber o que tinha acontecido.
Muito tempo depois, quando o dia amanhecia, para o que seria a nova realidade: a cama da minha mãe fora posta na sala, já com uma mortalha branca, ela repousava sobre a mesma, serena, sem vida, no descanso para a eternidade.
Na sala cheia de gente, uns olhando pela janela, outros mais distantes, pelo terreiro, todos chorando.
Minha mãe morrera no parto. O caçula sobreviveu – diferente do que tinha ocorrido a tia Zefa, pouco tempo antes em que ambos morreram –, e já era cuidado por alguém, alguma tia, alguma vizinha.
A comunidade inteira – que não era grande e toda formada por parentes ou amigos que vieram juntos na “expedição” de José Calheiro de Marinho, meu avô –, estava na nossa casa a testemunhar mais essa tragédia em família.
Éramos mais nove órfãos na família – a mais velha, embora já casada com um primo e com filhos, tinha pouco mais de vinte anos, os demais formavam uma “escadinha” que ia de zero anos até quase vinte –, a se somarem aos filhos de tia Zefa, de tia Nelci, irmãs de meu pai, também mortas e com filhos órfãos.
Nos cinquenta anos seguintes, espalhados por casas diversas e fechados nos próprios mundos, cada um enfrentou as próprias e angústias.
Muito embora essas lembranças tenham me acompanhado por toda vida, cada detalhe daquele último dia e, principalmente, as dores dos dias e anos seguintes, voltar ao Centro Novo é reacender e tornar mais intensos os sentimentos, saudades, tristeza, solidão, angustias …
Desde então se passaram cinquenta anos. valeram a pena? Tudo, já dizia o poeta, vale a pena, se a alma não é pequena.
As dores fizeram parte do “crescimento”, fizeram-nos mais fortes, mais resilientes … a aceitar os desafios da vida sem medo ou temor.
Certamente que nenhum queria passar por tais sofrimentos, mas deles não tivemos como fugir, foi a imposição da vida.
São cinquenta anos de lembranças, são cinquenta anos de saudade.
Abdon C. Marinho é advogado.