AbdonMarinho - Cotidiano
Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novembro de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho

A morte do livreiro**.

Por Abdon C. Marinho*.

RAIMUNDO NETO, sócio há mais de um quarto de século e amigo há mais de trinta anos, no fim da tarde de segunda-feira, 15 de janeiro, sem qualquer comentário adicional, me enviou um “card”, uma espécie de bilhete da modernidade. Ele trazia o informe da “passagem” do amigo Osmar Neres para o outro plano. 

Aos amigos que estavam na sala no momento em que recebi a “notificação fúnebre” e aos funcionários (acho que só a secretária Rosângela Sales ainda estava presente) repeti diversas vezes: — o Osmar partiu; o Osmar morreu … 

Era como se eu mesmo quisesse convencer-me das palavras que saiam da minha boca. 

O fato ocorreu no próprio dia 15 e aquela hora, pela programação contida no “card” já estava acontecendo o depósito do corpo no derradeiro local de descanso. 

Não tive a oportunidade de ir ao velório ou enterro dar os pêsames aos familiares ou mesmo um abraço fraterno. 

No início da noite, quando voltava para casa em um carro de aplicativo já que o senhor Afrânio Mangueira está em gozo de férias, pensava nos momentos que passei com o saudoso amigo, nossas conversas e “negociações” em torno de livros. 

No dia seguinte, antes de pegar a estrada para viajar para o interior, encontrei com o sócio Raimundo Neto que disse que tão logo soube da notícia do passamento de Osmar só lembrou de mim. 

Durante a viagem para o oeste do estado, região do Gurupi, embora entretido pela conversa dos colegas ou pela trilha sonora que tocava no carro, enquanto contemplava o vastidão da estrada, aqui e ali, pontuada por uma cruz ou um marco qualquer, lembrava da perda do amigo. 

Conheci Osmar ainda no primeiro ou segundo ano de trabalho na Assembleia Legislativa, 1991/1992. 

Ele passara por lá para vender livros para o deputado Juarez Medeiros. Como o deputado não estava acabamos conversando com ele me convencendo a comprar “Os Sermões”, do padre Antônio Vieira, finíssima coleção em papel Bíblia, da Editora Nova Aguilar. Foi a primeira grande obra adquirida com o suor do meu trabalho. 

Acho que gastei mais da metade do salário e ainda ficaram os parcelas a perder de vista. 

Assim, quase todos os meses Osmar aparecia pelo gabinete para receber uma parcela de um livro ou coleção ou para vender mais livros. 

Foi com essa “estratégia” que me vendeu inúmeros livros.

Durante mais de trinta anos, quase que todos os meses, Osmar me “visitava”. Na Assembleia, na Coliseu, nos comitês políticos, no escritório do edifício Los Angeles e, nos últimos vinte anos, no escritório da Rua dos Pinheiros. 

Nesse tempo todo acabou ficando amigo dos colegas sócios e das pessoas que trabalham comigo há mais uma ou duas décadas. 

As meninas, principalmente elas, já informavam pelo interfone: — o seu Osmar está aqui.

Ao que eu respondia: — já diga ele que não quero comprar livro algum, que o dinheiro acabou, mas diga ele para entrar.

Chegava e dizia: – guardei para você, por exemplo, “Obras de Luis de Camões”, trabalho finíssimo de Lello & Irmãos - Editores, direto da Rua das Irmãs Carmelitas, Porto, Portugal. 

Fazia assim sempre que queria me fazer uma venda. 

Como amante dos livros não resistia. Brigávamos pelos preços, eu querendo pagar menos e ele argumentando: — Abdon, veja que obra magnífica, que papel fino … esse papel Bíblia nunca será consumido por traças ou cupins. É diferente de uma obra em papel comum. E o conteúdo, nem se fala. 

Cada livro uma “briga”, uma conta nova. 

E vieram as obras de Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Charles Baudelaire, Oscar Wilde, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Olavo Bilac, José Lins do Rêgo, Vinicius de Moraes, Eça de Queiroz ... e tantos outros. Brasileiros, portugueses, franceses, russos, ingleses … pelas mãos de Osmar esses gênios da literatura dividiram espaço em minha estante e mente. 

Todas essas obras em papel bíblia e invariavelmente das editoras Nova Aguilar e Lello & Irmãos Editores.

Em 2015, uma tragédia sem vítimas fatais me atingiu: um incêndio doméstico levou parte dos meus livros raros. Como ia adquirindo-os no formato narrado acima ao longo (a época) de um quarto de século, não tinha noção do que havia perdido ou dos valores das obras. 

Osmar buscou nos seus registros e passou-me a relação das obras e os valores das mesmas para que pudesse juntar na ação judicial de ressarcimento. 

Infelizmente, nesse tipo de acontecimento, mesmo uma obra nova não é capaz de preencher o vazio deixado pela história do que se perdeu. Aquele livro, aquele disco, tem uma história que vai muito além do valor de tê-lo adquirido. São também os momentos que se dedicou à leitura ou ao ouvi-lo, as histórias daqueles momentos. 

Em 1991, quando adquiri a primeira coleção de os sermões (adquiri duas) acontecia isso ou aquilo, estava bem, pensava assim ou assado. Quando “chegou” aquele disco o ouvi pela primeira vez na presença de fulano ou sicrano, falávamos sobre isso …

Quando “perdemos” essas coisas é como se perdêssemos, também, parte da nossa história. 

O levantamento das obras perdidas (que conseguimos lembrar, alcançaram quase 100 mil, se corridos os valores) mas o valor afetivo era incalculável. 

Sabedor disso e do quanto ficara abalado com a perda de parte significativa da biblioteca, Osmar foi a minha casa e levou consigo tudo que conseguimos tirar do incêndio. Meses depois me devolvia pelo menos uma parte dos livros que considerávamos não ter salvação. Sozinho, em sua livraria, ele fizera o trabalho de “reconstrução” dos meus livros, trocou as capas, costurou partes, cortou folhas chamuscadas pelo fogo … e tudo mais – o trabalho ficou tão bom que pedi a ele para fazer a encadernação de um livro que ganhara do extinto jornalista Walter Rodrigues. 

As obras recuperadas por Osmar  trazem consigo as marcas de uma tragédia mas são, também, a comprovação de uma história de amizade e de amor aos livros. 

Quando findou a pandemia liguei para saber como estava e para convidá-lo para bater um papo, já informando que não compraria nada dessa vez. 

Osmar foi o “estranho” que fez parte da minha … da nossa vida …

Em meio a tantos assuntos que poderia escrever hoje – ou nesse fim de semana –, sobre política, equívocos, baixarias, etc., me pareceu mais adequado e inspirador render homenagens a um amigo muito querido. 

Ao escrever sobre A morte do livreiro – os mais atentos devem ter percebido –, faço como a recordar outra obra que ele me vendeu e que, provavelmente, perdeu-se no incêndio, “A morte do caixeiro-viajante”, de Arthur Miller, autor americano. 

Osmar foi meu “livreiro-viajante” durante mais de três décadas foi a todos os lugares onde trabalhei me vender livros à vista ou fiado em conta que teve data de abertura mas nunca de encerramento, como fazem mesmo os caixeiros-viajantes pelo Brasil a fora. 

Quando, no dia seguinte à morte do livreiro, falávamos sobre o acontecimento o sócio Raimundo Neto, acostumado as nossas “brigas” em torno dos livros, perguntou se no final de tudo quem ficara devendo a quem.  

Apurando na conta-corrente da vida, certamente fiquei eu devedor de Osmar Neres, não financeiramente (acredito)x, mas por tudo que ele me trouxe de conhecimento e de boas lembranças. 

Enquanto escrevo esse texto, e sou “assistido” por tantos autores que ele me trouxe, só aumenta a minha certeza nisso. 

*Abdon C. Marinho é advogado. 

**A morte do livreiro é uma singela homenagem ao amigo Osmar de Oliveira Neres (23/12/1948 - 15/01/2024).