AbdonMarinho - Inimigos íntimos.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Inimi­gos íntimos.


Inimi­gos ínti­mos.

Por Abdon C. Mar­inho.

UM DOS BIÓ­GRAFOS do pres­i­dente amer­i­cano Roo­sevelt (Franklin Delano Roo­sevelt, 18821945) assen­tou que naquele dia 08 de dezem­bro de 1941, quando fez o céle­bre «Dis­curso da Infâmia», no qual disse: «Ontem, 7 de dezem­bro de 1941uma data que viverá na infâmia—os Esta­dos Unidos da América foram repentina e delib­er­ada­mente ata­ca­dos pelas forças navais e aéreas do Império do Japão», para em seguida declarar a guerra aquele país, a maior difi­cul­dade do longevo pres­i­dente (o único a ser eleitos qua­tro vezes pres­i­dente), não fora uma coisa ou outra, mas, sim, “cam­in­har” do lugar onde descera do carro até atrav­es­sar o plenário do Con­gresso Amer­i­cano, onde faria o dis­curso e declararia a guerra.

Roo­sevelt, no iní­cio dos anos 1920, adquiriu uma doença par­al­isante dos mem­bros infe­ri­ores na época diag­nos­ti­cada como poliomielite ou par­al­isia infan­til (muito emb­ora já fosse adulto). Essa doença o impe­dia de andar e, por muito pouco, não o impediu de seguir a car­reira política, vindo a eleger-​se senador, gov­er­nador de Nova Iorque e, a par­tir de 1932, eleito pres­i­dente por qua­tro vezes.

Para os padrões da época não se afig­u­rava de “bom tom” que um pres­i­dente andasse em uma cadeira de rodas e, muito menos, que fosse “declarar guerra” demon­strando tal frag­ili­dade em sua saúde. Naquela época, quando o mundo não era trans­mi­tido ao vivo, o fato do pres­i­dente de uma das maiores potên­cias mundi­ais ser par­alítico (ou cadeirante) não era de domínio público – o sis­tema eleitoral amer­i­cano com eleições indi­re­tas, con­tribuiu para isso.

O desafio de cam­in­har até o local do dis­curso foi ven­cido pelo pres­i­dente que usando órtese nas duas per­nas con­seguiu manter-​se em pé e, com um dos fil­hos de um lado e um aju­dante de ordens de outro lhe ampara­ndo e segu­rando para não cair con­seguiu chegar até a tri­buna do Con­gresso Amer­i­cano.

Por esses dias divulguei umas fotografias de um atendi­mento no hos­pi­tal Sarah de São Luís, refer­ên­cia em orto­pe­dia.

Como sabem, tenho um inimigo íntimo. Na ver­dade, uma inimiga.

Essa inimiga não me larga de forma alguma e já me acom­panha há mais de cinco décadas.

Se a con­vivên­cia com quem é pos­sível separar-​se nas difi­cul­dades já é com­pli­cado imag­ine con­viver com uma inimiga de quem jamais poderá afastar-​se, como naque­les casa­men­tos de out­rora em o padre dizia: — até que a morte os sep­are.

No meu caso, talvez até dure um pouco mais. Rsrs.

Quando nos con­hece­mos, por assim dizer, já andava e cor­ria por todos os lados. Ela veio com tudo e, lit­eral­mente, “deixou-​me de qua­tro”, con­forme já con­tei noutras par­a­gens.

Foi um encon­tro avas­sal­ador que quase me fez sucumbir – por muito pouco, se não tivesse sido a inter­venção dos médi­cos, que aler­taram que não mais voltaria a andar.

Menino teimoso, cri­ado solto pelo campo, desafiei o vat­icínio. Voltei a engatil­har e depois a andar, a cor­rer, a brin­car, a levar uma vida nor­mal den­tro das lim­i­tações que me eram impostas.

Na ado­lescên­cia, já na cap­i­tal, per­cor­ria quase todos lugares do cen­tro, fosse nas ativi­dades de lazer, fosse nas ativi­dades de tra­balho, fosse na mil­itân­cia dos movi­men­tos políti­cos.

Mais adulto fre­quen­tava a fac­ul­dade depois de um dia inteiro de tra­balho e de pegar qua­tro con­duções, duas pra ir, duas pra voltar, como dizia a música.

A car­reira me levou a andar mais, a per­cor­rer quase todo o estado (e o país) dor­mindo aqui aman­hecendo acolá, o tempo todo, pois já se vão quase 30 anos de lutas.

A minha condição física nunca me impediu de fazer nada. Talvez de esquiar nos Alpes, de sur­far no Havaí, de escalar o monte Ever­este.

Mas fiz diver­sas out­ras coisas.

Diria que durante muitos anos tive uma con­vivên­cia “pací­fica” com a minha inimiga íntima.

Há cerca de vinte anos ela voltou a me provo­car, a per­tur­bar o que estava sossegado. Não dire­ta­mente, mas através de seus emis­sários. Como dizem: o Diabo quando não vem, mand o secretário.

Naquela opor­tu­nidade pro­curei a rede Sarah pela primeira vez e, para garan­tir algum con­forto para as ativi­dades do dia a dia, me foi recomen­dado o uso de uma ben­gala.

As out­ras opções de trata­mento – que na ver­dade mino­rariam ou adi­ariam a situ­ação –, me pare­ce­ram dolorosas e/​ou custosas.

Emb­ora fosse, dig­amos, “com­plexo” aceitar o uso da ben­gala por quem estava acos­tu­mado a fazer todas as ativi­dades sem neces­si­dade desse tipo de apoio, pro­curei “encarar” como um mal necessário e até ele­gante.

Em 2004, quando pro­curei o Sarah pela primeira vez, a sín­drome pós-​pólio (SPP), que acred­ito seja o meu quadro, pelo menos, em diver­sas car­ac­terís­ti­cas é com­patível, somente foi incluída no Catál­ogo Inter­na­cional de Doenças (CID 2010) em 2010, graças a um tra­balho desen­volvido por pesquisadores brasileiros da UNIFESP.

Há cerca de cinco anos, aprox­i­mada­mente, voltei a sen­tir nova­mente (ou aumen­tar) uma fraqueza mus­cu­lar, um descon­forto ao andar e um agrava­mento nas dores do pé dire­ito, que ficou mais “virado” e provoca dores mais fortes ao andar.

Uma queda “do nada” acen­deu o sinal de alerta para o que pode­ria estar acon­te­cendo.

Foi essa situ­ação, aliás, seu agrava­mento que me levou ao Sarah nos últi­mos dias.

Novas radi­ografias mostraram uma piora nas defor­mações dos pés e per­nas em relação aque­las que foram tiradas em 2004.

A recomen­dação é que passé a usar órtese nas duas per­nas para esta­bi­lizar os pés e evi­tar as dores e, quem sabe, depois vir a fazer uma ou mais a cirur­gias para recolo­car as coisas nos lugares.

No dia que fiz a pub­li­cação que pre­ocupou os ami­gos sin­ceros tinha ido lá para fazer os moldes para as órte­ses recomen­dadas.

Claro, além do uso da órtese para evi­tar as dores ao cam­in­har, ter­e­mos que retomar com mais dis­ci­plina a fisioter­apia e os exer­cí­cios físi­cos.

Não é nada que não pos­samos fazer depois de ter­mos ven­cido tan­tas batal­has.

Minha irmã caçula me man­dou men­sagem pre­ocu­pada por ter visto as fotografias: — me conte tudo. Pediu.

Após fazer o relato do que se pas­sava fechei a con­versa mais ou menos assim: — não se pre­ocupe, minha irmã. E veja pelo lado bom, agora você terá um irmão que será quase um “homem biônico”. Rsrs.

No mais, é vida que segue. Como dizia o poeta no canto de morte do guer­reiro (que não é o caso, longe disso): “sou bravo, sou forte, sou filho do norte”.

É isso.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.