AbdonMarinho - Ensaio sobre a minha velhice ou velho, sim; velhaco, jamais.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Ensaio sobre a minha vel­hice ou velho, sim; vel­haco, jamais.


Ensaio sobre a minha vel­hice ou velho, sim; vel­haco, jamais.

Por Abdon C. Marinho.

EM FRENTE ao espelho, enquanto tirava a barba, con­tem­plava a pas­sagem do tempo. Uma ruga aqui ou ali, que antes não exis­tia, o cabelo já quase total­mente esbran­quiçado, que mesmo o sham­poo espe­cial não con­segue escon­der, esse nariz, que emb­ora nunca tenha sido pequeno, parece ter se avolumado, mesmo as orel­has, que sem­pre servi­ram para nom­i­nar a famosa tribo dos “orel­has lon­gas”, agora, com muito mais pré­cisão jus­ti­fi­cam tal nome.

Estou ficando velho. Não muito (rsrs), mas, estou.

A inex­orável certeza, além dos sinais acima descritos, vem, sobre­tudo, da con­statação de que os anos que ainda tenho pela frente já são bem menos que os já vivi­dos – bem vivi­dos? Não sei.

Por esses dias lia uma mag­ní­fica entre­vista do can­tor Ney Matogrosso em que ele, do alto dos seus mais de oitenta anos, dizia encarar com serenidade a pas­sagem dos anos e que, como devoto da dout­rina bud­ista, tem por certo que essa é ape­nas uma passagem.

Cré­dulo, tam­bém acred­ito que essa é ape­nas uma pas­sagem das muitas que ainda virão e das que já pas­saram.

A matéria é o pó que ao pó vai retornará mais cedo ou mais tarde. Somos todos iguais na certeza que nada somos além de pó.

Além disso, sem­pre tive como princí­pio que deve­mos envel­he­cer com dig­nidade.

Não falo aqui da dig­nidade mate­r­ial, de se ter como prover o próprio sus­tento sem ser um estorvo ou um fardo aos famil­iares, muito emb­ora o que se ver, na maio­ria das vezes, são os idosos sendo os prove­dores daque­les que dev­e­riam tra­bal­har de forma mais árdua – e, não raro, sendo explo­rados de forma ver­gonhosa por aque­les que teriam a respon­s­abil­i­dade de lhes cuidar e pro­te­ger.

A dig­nidade que desejo tratar é aquela que tem a ver com o caráter humano.

Acred­ito que já são tan­tas as cha­gas a acom­pan­har a vel­hice – na maio­ria das vezes –, que para compensá-​las os idosos dev­e­riam ser oásis de decên­cia, exper­iên­cia e do con­hec­i­mento acu­mu­lado ao longo das décadas.

Os arrou­bos juve­nis, os deslizes ou mes­mos as fal­has cometi­das na juven­tude, ao meu sen­tir, pre­cis­ariam (ou dev­e­riam) se sope­sadas na “bal­ança do tempo” serem infini­ta­mente menores que as qual­i­dades acu­mu­ladas, o caráter con­sol­i­dado, a moral irre­torquível, a honra, em resumo, a dig­nidade do envel­hec­i­mento.

Se, às cha­gas físi­cas da vel­hice ao invés de serem suprim­i­das pela dig­nidade do envel­hec­i­mento forem acresci­das ou ampli­adas às fal­has de caráter, a tor­peza, a avareza, a des­onra, a ambição desme­dida, a inveja, o ódio e tudo mais, ter-​se-​á dado o fra­casso da existên­cia.

Pois, muito emb­ora possa até ter deix­ado for­tuna para a descendên­cia, fra­cas­sou naquilo que ver­dadeira­mente importa, o bom e velho exem­plo e a retidão inspi­radora.

Um dito cor­riqueiro da minha aldeia tinha o seguinte enun­ci­ado: “fulano deu um velho, mas não deu um homem”.

É dizer, na bal­ança do tempo, fulano levou para a vel­hice as mes­mas fal­has de caráter que sem­pre o acom­pan­haram.

Não foi homem na infân­cia, não foi homem na juven­tude, não foi homem maturi­dade e nem o foi ou será homem na vel­hice.

Será um velho, um vel­husco, nunca um homem.

Um bor­dão pop­u­lar nos pro­gra­mas poli­ciale­scos das tardes diz: “os canal­has tam­bém envel­he­cem”. Isso para aque­les que con­seguem chegar à vel­hice.

E essa é a mate­ri­al­i­dade daquilo para os a vida não teve qual­quer ser­ven­tia: viver e mor­rer como um canalha. Velho ou novo, tenho a canal­hice na própria som­bra.

Vejam o quanto de des­perdí­cio, uma vida inteira de canal­hice.

Foi com o meu pai, homem sim­ples, rude, agricul­tor e com­er­ciante, anal­fa­beto por parte de pai, mãe e parteira que aprendi que mesmo aquele nada tem a deixar aos seus, dev­e­riam ter como pre­ocu­pação a her­ança do bom exem­plo.

Esse apren­dizado tem me acom­pan­hado e servido ao longo da vida. Diante das situ­ações em que “atal­hos” aparentam ser o certo, lembro-​me me dele para dizer: — me des­culpe, tenho mas família grande.

O envel­he­cer com dig­nidade é saber que o brilho do ouro jamais poderá ofus­car a limpi­dez de uma con­sciên­cia tran­quila.

A arte de envel­he­cer tem esse sig­nifi­cado: você ser capaz de dis­cernir o que vale você acrescer a sua “bolsa” daquilo que você poderá acrescer ao seu caráter.

Um dos livros que mais mar­caram minha infância/​juventude foi “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Nele, no funesto trato, todas as vila­nias e tor­pezas do per­son­agem eram mar­cadas no retrato e ao cabo de tudo quando ele foi olhar aquele que um dia fora o mais belo quadro só restava uma mon­stru­osi­dade tão dis­forme que ele não con­seguia olhar (não darei spoiler do suce­dido). Leiam, o livro é uma inspi­ração para os jovens.

Desde então – e com o pas­sar dos anos –, cada vez mais tornei-​me obcecado pela arte de envel­he­cer com dig­nidade.

Talvez o justo receio de como serão as encar­nações futuras de que tratam o espiritismo e algu­mas religiões ori­en­tais; talvez pela fé Cristã que nos traz a promessa de um Juízo Final onde todos serão jul­ga­dos; talvez pelo desejo de hon­rar os meus.

Nunca me assus­tou o “envel­he­cer”, ape­nas os que mor­rem cedo não terão tal priv­ilé­gio. Min­has rugas, min­has cha­gas, o nariz ou o par de orel­has que nomeiam com orgulho nossa tribo, são o teste­munho de uma existên­cia.

O que sem­pre me assus­tou foi a des­onra, ser tido como mau caráter, embusteiro, canalha, vagabundo, leviano, malan­dro, cafu­mango, des­ocu­pado, lus­tra, par­a­sita, saranda, vadio, ximbo, volúvel, etcetera.

Esse pavor me con­duz ao tra­balho árduo, a cri­ação, à dis­posição e à inspi­ração. A não perder meu meu tempo com o que não vale a pena.

Quando chegar a hora – espero que demore –, jamais darei deter­mi­nadas ousa­dias. Velho, sim, cer­ta­mente, serei – e com orgulho; vel­haco, jamais.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado, escritor, cro­nista.