UMA PRECE POR BERNARDO.
Já escrevi aqui sobre o assassinato do menino Bernardo Uglione (omito deliberadamente o sobrenome do pai). Já naquela época, por ocasião da páscoa, o crime tinha todos os ingredientes para entra na galeria das barbaridades contra indefesos. Essas barbaridades que acontecem quase todos os dias e que de tão frequentes já incomodam pouco.
Hoje, com divulgação de uma série de vídeos mostrando a rotina dentro da casa em que viveu seus últimos anos, uma espécie de mansão dos horrores, podemos chegar perto de dimensionar todas as torturas, físicas e psicológicas de que foi vítima. Pai e madrasta, pelo que podemos perceber dos vídeos, até agora só os de 2013, mostram que os dois destruíram a criança psicologicamente. Imaginem para um menino de 10 anos ter o pai dizendo que a mãe que cometera suicídio (?), na verdade o abandonara, o deixara no mato – nas palavras do pai –, e que por isso tinha pena dele. E essa deve ter sido a menor da tortura, já feita quando a criança tinha 10 anos. Num outro momento, enquanto dopam a criança e o pai fala numa dosagem de 20 gotas, a madrasta diz para aplicar 60 gotas. Vejam, são 40 gotas de diferença entre uma sugestão e outra.
O crime em si, nada representa, em matéria de perversidade, ao que pai e madrasta, já vinham fazendo com essa criança desde que a mãe morreu. É algo assustador, apavorante.
Quando a sua mãe morreu em 2010, Bernardo tinha de 6 anos, passou a ser criado por dois loucos, sem noção e dominados pela maldade. Nos vídeos, que com incomum sadismo, gravaram, segundo os meios de comunicação, para mostrarem posteriormente o comportamento da criança, é a prova cabal de toda a tortura psicológica a que a mesma fora submetida pelos dois. Não se tratava apenas de negligência, falta de atenção ou maus-tratos, trata-se de desamor, ódio, a imposição à criança de que ela não era querida por nenhum dos dois, tratando-a como intrusa e a levando a situações limites.
Os mais sábios que eu, já diziam que a pior sensação que pode acontecer com qualquer ser humano, de qualquer idade, é a de não ser querido. Você impor essa sensação a uma criança, por anos a fios, desde os seis anos de idade é algo absurdo. A situação torna-se ainda mais perversa quando essa imposição é feita a um órfão. Quando uma criança perde a mãe na idade em que Bernardo perdeu a sua – digo isso com conhecimento de causa –, ela passa a se sentir deslocada em qualquer lugar, a sua própria casa é como se não fosse mais sua, é como se virasse um intruso no ambiente que antes era seu, fica sem uma referência segura. Por isso mesmo, os órfãos precisam de mais atenção, de mais carinho, de sentimentos que os façam conviver ou tornar menos penosa a imensa perda. Se você tem uma família cuidando da criança, fazendo-a se sentir querida, o sentimento de abandono se torna mais suportável, jamais superável. Acho que psicólogo algum consegue dimensionar seu alcance.
No caso de Bernardo, deu-se justamente o contrário do que era esperado. Ele não encontrou essa fortaleza em quem deveria encontrar, pior que isso, a referência que podia ter no pai nunca existiu pois esse era, na verdade, o seu principal algoz. As torturas a que o submetiam – e vemos isso claramente nos vídeos –, eram, acredito, para forçá-lo ao suicídio, fazê-lo desesperar a tal ponto a só restar o caminho de tirar a própria vida. Conseguiriam se a pressa em livrar da criança não tivesse falado primeiro.
Os depoimentos de amigos, inclusive do casal que o acolhia, mostram que ele era amável, carinhoso com todos. Muito diferente da criança que mostram com um facão na mão ameaçando o pai. Vejam o grau de tortura psicológica e, talvez, provocada por medicamentos, a que o estavam submetendo. Uma reação violenta, principalmente contra um pai, não corre do nada vinda de uma criança. O que faziam com ele antes de começarem a gravar seus horrendos vídeos domésticos? A que nível o estavam torturando? Quantas provocações foram feitas antes? Será que alguém duvida que faziam um trabalho sistemático para provocar no menino o grau de desespero que ele exibe nos vídeos? Será que duvidam que tentavam levá-lo à loucura e/ou ao suicídio de forma consciente? Claro que não, tanto que quando deram cabo à vida do menino trataram de apagar os vídeos dos celulares.
O tipo de comportamento que dispensaram a criança não é encontrado nem entre os animais ditos irracionais. Entre eles, vemos, em muitas espécies, que órfãos encontram proteção e apoio do resto da manada. Muitas vezes se ver até adoções entre espécies distintas.
Histórias de madrastas más povoam a mente das pessoas desde sempre, desde a infância mais tenra. A história do menino Bernardo não é uma delas. A madrasta pode até ter aplicado a injeção letal, como já confessou a cúmplice, e não sua loucura precipitado os acontecimento. Entretanto, não resta a menor dúvida de que neste enredo tétrico, que nem os mais criativos autores do gênero foram capazes de engendrar, que o pai é o ator principal. Ele não apenas um pai ausente que deixava e se omitia diante do tratamento dispensado pela esposa ao filho órfão, frágil, necessitando dele mais que nunca, ele tinha as participações mais ativas nas torturas a que submetiam o seu próprio filho. Absolutamente indigno de ser chamado de pai. E, apesar disso, de toda a montruosidade, o filho o amava. Nos depoimentos dos vizinhos percebe-se que ele só falava das brigas com a madrasta, ocultando toda a tortura a que o pai o submetia. Talvez não se desse conta da própria tortura que sofria por parte do pai. E que era ele, o pai, o principal responsável por todo o seu sofrimento e desespero.
O martírio que esse menino foi submetido desde que ficou órfão é digno da consternação de qualquer pessoa que tenha um mínimo de sentimento. Merece, que em seu nome, façamos uma prece.
Abdon Marinho é advogado.