Estupro ideológico.
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- Criado: Domingo, 08 Novembro 2020 20:22
- Escrito por Abdon Marinho
ESTUPRO IDEOLÓGICO.
Por Abdon Marinho.
OS DOIS assuntos mais comentados no Brasil, nos últimos dias, foram o “caso Mariana Ferrer” e as eleições americanas. Embora pareçam, e sejam, assuntos totalmente diferentes, pelo menos aqui, estes temas acabam se encontrado.
Cada um ao seu tempo, tratarei de ambos, iniciando, neste texto, pelo primeiro.
Esclareço, de início, que tratarei do caso envolvendo o suposto estupro, em tese, considerando que o processo – como é de praxe –, corre em “segredo de justiça”, só sendo público “retalhos” de uma instrução e a sentença absolutória, talvez o pivô de toda celeuma, e as versões de ambos os lados, as suspeitas de uma sentença injusta, os abusos claramente perpetrados contra a vítima pela defesa do acusado e a omissão, que chega às raias do crime, do juiz e do promotor que atuaram no caso.
Em que pese ser o estupro um dos crimes mais repudiados, a ponto daqueles que o praticam não encontrarem guarida nem entre bandidos, e por isso lhes dispensam celas especiais, os chamados “seguros”, e não raro, muitos defensores recusarem a defesa de tais criminosos, o crime de estupro, infelizmente, ainda ocorre no Brasil em uma proporção absurda.
Segundo o Añuário Brasileiro de Segurança Pública, ocorre um estupro a cada oito minutos, e, no ano passado, 2019, foram registrados 66.123 estupros, dos quais 57,9% contra vítimas de até 13 anos e 85,7% contra pessoas do sexo feminino.
Em pouco mais de uma década o número de estupros no Brasil cresceu mais de seis vezes. Cresceu este volume ou foram revelados todos estes casos a partir da implementação de legislação e programas de atendimento às vítimas, bem como, o “alargamento” do conceito da tipificação do crime, muito embora ainda se saiba que exista muita subnotificação.
Qualquer que seja o motivo para o aumento deste tipo de crime, o fato é que não podemos ser lenientes com o mesmo, deixar de apurar e punir os responsáveis, oferecer assistência e proteção as vítimas e prevenir para que o mesmo não aconteça.
Durante décadas a violência contra a mulher foi ignorada.
Se chegava a uma delegacia e denunciava um estupro geralmente era tratada como “vadia”, por vezes se exigia que provasse ter sido abusada ou que resistira ao crime ao limite da própria vida e, o pior, disponibilizava-se para a imprensa os dados do registro policial que, sem qualquer respeito ou tratamento, eram divulgados, com o nome da vítima, o endereço, filiação e, até mesmo, o que o violentador – ou violentadores –, fizeram com a mesma.
Não bastasse toda a violência física e psicológica já sofrida a vítima tinha, ainda, que suportar esse “linchamento público”.
Certa vez, em um caso de estupro coletivo ocorrido na capital, acho eram os anos 90 do século passado, o jornal noticiou, como se fosse um filme pornográfico, em detalhes tudo que os meliantes fizeram com a vítima, não a poupando nem dos detalhes mais sórdidos.
Esse parece que foi o último caso que li na imprensa, depois passaram a ocultar o nome e endereço da vítima ou a não destacar como faziam anteriormente.
Daí a necessidade de se tratar os casos de violência sexual com extremada precaução. Não só porque historicamente sempre se atribuiu às vítimas a responsabilidade pela violência sofrida, ora por dizer que determinada roupa seria “provocativa”; ora, por dizer que a mulher não “resistira”, o implicaria no “consentimento”; ora, por dizer que a mulher consentira só se arrependendo posteriormente para alegar o suposto estupro para “tirar” do suposto violador algum tipo de vantagem.
Claro que não podemos deixar de atentar – ou fingir desconhecer –, que não poucas vezes acontecem exageros e não raro uma “cantada” mal feita – ou mesmo as bem feitas –, é confundida com assédio sexual ou moral.
Não raro, também, são as vezes em muitas mulheres usam um instrumento legítimo de proteção contra a violência doméstica como forma de vingança ou perseguição contra seus ex-companheiros, ex-maridos ou ex-namorados.
Embora a regra seja de violência contra a mulher – e os números comprovam isso –, existem estas deturpações.
Daí a necessidade de se examinar os casos que são postos com cautela, sem paixões e preconceitos ou, como dizia um antigo mestre, “cum grano salis”.
O chamado “caso Mariana Ferrer” reabre tais feridas.
Pelas as informações que circulam “extra autos”, já que o caso, como dito anteriormente, corre em segredo de justiça, a vítima teria sido “dopada” com o alucinógeno conhecido pelo nome “boa noite Cinderela”, levada a um dos camarins e abusada sexualmente por um cidadão; ato contínuo ela teria procurado a delegacia e feito o exame de corpo e delito que atestou a conjunção carnal e o DNA do acusado nas suas roupas íntimas e dentro da moça, que seria virgem.
Através de representação da vítima o Ministério Público denunciou o suposto predador sexual pelo “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: … § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
O fato da vítima supostamente encontrar-se “dopada” enquadraria na última parte do parágrafo primeiro.
A sentença que absolveu o suposto autor do fato – com o parecer favorável do Ministério Público –, tem como ponto essencial saber se o ato sexual foi consentido ou não ou se a suposta vítima teria condições de consentir o mesmo.
Afirma o magistrado: “assim, diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado … com fundamento no princípio do in dubio pro reo”.
O princípio do in dubio pro reo é uma garantia secular do direito brasileiro e destina-se a proteger os cidadãos.
O Estado/juiz reconhecendo inexistir certeza quanto a conduta do agente lhe concede o benefício da dúvida. Ou seja, na dúvida antes um culpado solto a um inocente preso.
Logo, poder-se-ia interpretar a sentença absolutória do magistrado como um legítimo exercício do dever de cautela.
Entretanto, também é sabido que um processo, conforme a sua condução, a forma como é instruído e até mesmo as perguntas que são feitas para as testemunhas e partes, pode levar à certeza ou a dúvida.
O ponto da sentença que o juiz ao registrar dúvida e por conta disso absolver o réu, levou ao alvoroço de se criar nos meios de comunicação a figura do “estupro culposo” – inexistente no direito brasileiro –, que, foi, e tem sido, explorado à exaustão.
A isso, somou-se, ainda, a divulgação de trechos da audiência de instrução criminal na qual desnudou-se para a sociedade os excessos praticados pela defesa do réu em “vilanizar” a vítima diante do silêncio obsequioso e omissivo do magistrado e do representante do Ministério Público e do próprio advogado da vítima – que, deduzo, esteve presente a audiência virtual.
Ainda que se diga tratar-se de trechos ou que as falas estão fora do contexto, não acredito que isso venha mudar o fato de que trataram a vítima como se a mesma estivesse diante de um tribunal de inquisição da Idade Média, de nada lhe valendo os pedidos para que fosse tratada com respeito e/ou o choro.
Para aumentar a desgraça do acontecido, como a divulgação da audiência deu-se através de um site ligado à esquerda brasileira e mundial, logo apareceram os ideólogos da direita e esquerda, a favor e contra a vítima.
O Brasil tornou-se a primeira nação do mundo a inaugurar o conceito de “estupro ideológico”, com a esquerda defendendo que ocorrera um estupro e a direita afirmando que não, ou, caso tenha havido, a culpa teria sido da vítima.
Com o país registrando um estupro a cada oito minutos parece-me surreal o tema vire pauta de debates ideológicos. Além da gravidade do tema o que choca é levem o debate para o palco da política e da ideologia.
Confesso que não sei onde o país vai parar com tamanha radicalização política, a ponto de se politizar um episódio de suposto estupro, quando o mesmo deveria ficar restrito às esferas policiais e judiciárias, com apuração rigorosa e punição exemplar para o culpado, quando comprovada a culpa.
Mas não, por aqui, nem o estupro, quer dizer, a luta contra o estupro – e todas as formas de violência contra a mulher os as minorias –, é capaz de unir o país.
Abdon Marinho é advogado.