AbdonMarinho - TRISTEZA E NOSTALGIA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

TRIS­TEZA E NOSTALGIA.

TRIS­TEZA E NOS­TAL­GIA.
COMO todos desta ilha, quiçá do estado, assisti com inco­mum tris­teza a tragé­dia que viti­mou uma cri­ança no Municí­pio de Paço do Lumiar, na região met­ro­pol­i­tana da cap­i­tal. Impos­sível que um fato tão bár­baro não nos comova e nos faça refle­tir.
Afi­nal, que mundo é este em que vive­mos? Como, cri­anças que dev­e­riam ser pro­te­gi­das por todos encon­tram o abuso, a vio­lên­cia e a morte? O que, afi­nal, se passa com a humanidade? Viramos bestas humanas?
Volto no tempo para lem­brar o quanto éramos felizes na nossa infân­cia e ado­lescên­cia.
Morá­va­mos no inte­rior, primeiro no povoado e depois na sede.
Com seis ou sete anos lá estava eu, ainda com min­has lim­i­tações (ou ape­sar), subindo nas goiabeiras, nas mangueiras, nos cajueiros ou nos pés de ingá para col­her as fru­tas da época e comer lá em cima mesmo.
Bas­tava pas­sar no calção que estavam prontas para con­sumo.
No inverno brincá­va­mos nos igara­pés e açudes. Uma bóia de pneu era com­pan­hia para ficar horas den­tro d’água; às vezes saí­mos para pas­sar­in­har com nos­sas baladeiras e bor­nais cheios de pedrin­has como munição; ou pescar com anzol.
Devo con­fes­sar que nunca fui muito bom pas­sar­in­har ou pescaria, mas valia pela ocu­pação da mente.
Lem­bro que fazíamos nos­sos próprios brin­que­dos. Uma lada de óleo “Du Reino”, uma velha “japonesa” (que era como chamá­va­mos as sandálias), uma tábua e alguns pre­gos, viravam um car­rinho que podíamos puxar para cima e para baixo; uma cachopa de tun­cum, babaçu ou macaúba, sem muito tra­balho, virava um car­rinho de rolimã que usá­va­mos para escor­re­gar ladeira abaixo, man­hãs ou tardes inteiras subindo e descendo as ladeiras mais íngremes (vejo, hoje, as pes­soas pagando para descer aque­las dunas no Rio Grande do Norte e lem­bro que já fazíamos isso há mais de quarenta anos); e tinha ainda o esconde-​esconde, o jogo de peteca ou de piões (eu mesmo fazia belos piões), o can­cão.
Nos­sos dedos, per­nas, costas eram lac­er­adas pelos cortes, pelo arame farpado das cer­cas eram teste­munhas. Cortá­va­mos um dedo, enter­rava na terra até estancar o sangue.
E, já tra­bal­hava, ia com meu pai ou outro adulto, bus­car em out­ros povoa­dos ou roças longín­quas, o arroz que fora com­prado “na folha”. Eram quilômet­ros e quilômet­ros encima de uma can­galha, por veredas fechadas, pagá­va­mos o arroz, fechá­va­mos os sacos com bar­bante e voltá­va­mos para casa, sobre a carga.
Não raro, ia bus­car o gado na quinta para levá-​lo ao cur­ral.
Eram anos de far­tura, tín­hamos as gal­in­has, os ovos, os capões, os por­cos, cabras, umas reses. Da roça saia o arroz que era seco, tor­rado e “pilado” em pilões, o fei­jão, o milho, a abób­ora, melões e as melan­cias. Sem luz elétrica, os pedaços de carne ou toucin­hos eram armazena­dos em latas grandes de gor­dura de porco.
Nas noites de luar, ficá­va­mos até mais tarde debul­hando o milho ou fei­jão, enquanto ouvíamos um rádio de pilha, no estilo jabuti, ou ouvindo os cau­sos.
Mais “velho”, já com nove ou dez anos e morando na sede do municí­pio (Gov­er­nador Archer e depois Gonçalves Dias), os dias eram mais divi­di­dos: man­hãs no colé­gio e a tarde e noite nas brin­cadeiras, nos quadrin­hos.
Eram jogos de peteca, queimado, tan­tos out­ros. Lia com avidez, quadrin­hos da turma da Mônica, Pato Don­ald, Tio Pat­in­has (meu favorito, até hoje).
Já começava a ler, tam­bém, obras mais sérias, os clás­si­cos da lit­er­atura mundial, brasileira e tam­bém sobre a mitolo­gia grega.
E, ainda, devo con­fes­sar, as revistin­has de sacan­agem, muitas com pági­nas coladas por sub­stân­cias estra­nhas. Pegá­va­mos estas revis­tas dos mais vel­hos e as tín­hamos escon­di­das em lugares altos ou debaixo de colchões.
Naquela época, com dez ou onze anos, já morando em Gonçalves Dias, pegava minha “monareta” (um tipo de bici­cleta), e descia, soz­inho, rumo ao Cen­tro Novo, nosso povoado de origem, dis­tante cerca de 6 km (até me sur­preendo com estas lem­branças: não sei como ped­alava doze quilômet­ros e não mor­ria), para vis­i­tar os par­entes ou mesmo só para passear.
Essa farra toda até meus doze anos, quando meu pai colo­cou uma qui­tanda e a entre­gou para tomar de conta, já era um “adulto” fazia o giná­sio, no turno da noite, no Colé­gio Ban­deirante.
O dia pas­sava no comér­cio, vendendo cachaça, fumo de rolo, cig­a­r­ros, quar­tas de café, óleo, açú­car, dindins, e out­ros pro­du­tos, todos pesa­dos e medi­dos por mim.
Nos horários mais vagos, usava o tempo jogando damas, lendo quadrin­hos, “bolsilivros”(como chamá­va­mos os livros de bolso) ou mesmo livros comuns, história, geografia, lit­er­atura.
Além da conivên­cia diária com bêba­dos, rapari­gas e todo tipo de gente, à noite, na volta das aulas, que iam até as nove e meia ou dez horas, voltava, muitas vezes soz­inho ou com os ami­gos, pela rua dos cabarés e até encostá­va­mos em alguns.
A minha qui­tanda, aliás, ficava do lado da casa de uma rapariga. Inúmeras foram às vezes que me pediu fiado durante o dia para pagar com o apu­rado da noite. Eu, e todos, sabíamos, não era seg­redo, o que ela fazia a noite para aman­hecer com o din­heiro no dia seguinte.
Isso tudo durou até vir para São Luís, fazer o segundo grau no Liceu Maran­hense. Mesmo na ilha, com quinze anos, andava a cidade toda, saia do Liceu e ia até a Casa do Estu­dante, no final da Rua do Pas­seio, ou ia para a Praça Gonçalves Dias, onde ficava até oito ou nove horas.
Fazia isso soz­inho ou com alguns cole­gas. Às vezes até íamos ao Bairro de Fátima, tido como vio­lento na época, andando pé quilômet­ros, pas­sando vielas ou becos, out­ras vezes descíamos a Cam­boa, como escudo, só a farda do colé­gio.
Nada nos acon­te­cia. Não éramos molesta­dos ou impor­tu­na­dos. Saíamos de casa e voltá­va­mos quando queríamos, às vezes, só avisando, quando tín­hamos uma ficha tele­fônica, que iríamos chegar mais tarde. Já aqui em São Luís, que tinha tele­fone, no inte­rior, saíamos e voltá­va­mos só tendo o cuidado de está em casa no horário das refeições.
Lem­bro que no inte­rior, durante o dia as por­tas das casas ficavam aber­tas, a noite ape­nas encostadas com uma cadeira, o último a entrar pas­sava a chave.
Não tín­hamos a pre­ocu­pação de andar olhando em volta, com medo.
Fomos cri­a­dos assim, com essa liber­dade, con­fi­ança.
Eu ven­dia cachaça, con­haque, pitu, fumo, cig­a­r­ros, o dia inteiro, nunca tive a curiosi­dade de beber ou fumar. Out­ros vícios, nem cog­itá­va­mos da existên­cia.
Assisto o hor­ror dos nos­sos dias, com cri­anças pre­sas den­tro casa, vivendo em bol­has, sem con­seguir pegar um ônibus, sem ir numa venda, sem con­hecerem nada vida.
Fico pen­sando como foi que nos tor­namos estes tipo de sociedade, com tanta vio­lên­cia, quando cri­anças, jovens, mesmo os adul­tos ou vel­hos, não estão seguros nem den­tro de casa, tran­ca­dos.
Fico pen­sando no quanto minha infân­cia e ado­lescên­cia foram felizes ape­sar de todas as restrições físi­cas e/​ou finan­ceiras.
Cer­ta­mente já fomos pes­soas bem mel­hores.
Abdon Mar­inho é advogado.

Comen­tários

+1 #1 Edi­nar moura 05-​11-​2017 16:59
Ver­dade do Abdon. Éramos felizes e nao sabíamos. Como imag­i­nar em nossa infân­cia. Que uma cri­anças de 10 cor­re­ria perigo den­tro dr casa.
Minha lavadeira e meu pai lavrador, saiam para tra­bal­har e nos deix­avam em casa. E era Assim com os viz­in­hos. Tin­ham medo ape­nas que os fil­hos caíssem em um poço, ou que brin­cando com fogo se fer­risse.
Hoje nao se esta seguro em lugar algum. As cri­anças nao pidem brin­car livre­mente como fazi­amos, nao se sabe onde esta o mal feitor.
Me per­gunto? Onde vamos Pará. Sera que vai Pará?
Nao vejo as pes­soas , os políti­cos com pre­ocu­pação com isso. Cada dia leis mais bran­das, e ban­di­dos mais a ver­dade para agir.
Pre­cisamos gri­tar, antes que nao tenha mais volta.
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