AbdonMarinho - Cinquenta anos essa noite - lembranças e saudade.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Quinta-​feira, 21 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Cinquenta anos essa noite — lem­branças e saudade.

CINQUENTA ANOS ESSA NOITELEM­BRANÇAS E SAUDADE.

Por Abdon C. Marinho*.

VOLTEI ao Cen­tro Novo, minha aldeia orig­inária.

O aniver­sário de cinquenta anos da par­tida de minha mãe para o outro plano me trouxe até aqui. Uma busca para rea­v­i­var as memórias, sen­tir os mes­mos cheiros da infân­cia que tive é que foi mar­cada por acon­tec­i­men­tos tão trági­cos.

A velha estrada – prati­ca­mente um cam­inho –, lig­ando os municí­pios de Gov­er­nador Archer e Gonçalves Dias deu lugar a uma rodovia asfal­tada, larga e que cor­tou mor­ros e ser­ras, tor­nando a dis­tân­cia bem mais curta; cor­tou tam­bém os ter­reiros das casas onde colocá­va­mos as cadeiras para con­ver­sar ou fazer alguma ativi­dade cole­tiva, como debul­har milho ou fei­jão das roças que ficavam próx­i­mas onde cul­tivá­va­mos “de tudo”.

Pas­sando de carro com o meu sobrinho-​neto, vi que já são pou­cas as casas que não estão cer­cadas por muros ou mesmo cer­cas, con­fi­nando a estrada e os espaços por onde andá­va­mos e cor­ríamos (?) livre­mente.

Reduz­i­mos a veloci­dade ao pas­sar pelo o local onde ficava a velha casa onde nasci (e onde nasceu quase todos os meus irmãos pelas mãos de uma parteira da família, a esposa de tio Antônio, o mais velho dos irmãos de meu pai), nada restou.

Era uma casa sim­ples, muito sim­ples, mas, ao menos aos olhos de “eu, menino” pare­cia grande, com alguns quar­tos, pois a família já era grande e tinha ainda minha vó, que chamá­va­mos titia, que viu­vez foi morar conosco; alguns depósi­tos, onde papai guar­dava o arroz de sua pro­dução e o que com­prava “na folha” de out­ros pro­du­tores e que íamos bus­car em bur­ros dire­ta­mente nas roças; salas, de chão batido, uma, como sala de estar, onde ficava o oratório de mamãe, sua máquina de cos­tura; o rádio estilo jabuti, algu­mas “cadeiras de macar­rão”, tam­boretes, e, tam­bém, das min­has primeiras lem­branças, o espaço onde minha espal­hou sobre um encer­ado um colcha de veludo onde eu pode­ria ficar sem pegar “friagem”, depois de quase mor­rer em con­se­quên­cia da pólio; ainda, coz­inha com jirau para os fun­dos onde se man­tinha uma cri­ação de por­cos e gal­in­has soltas.

À dire­ita da casa, de quem olhasse da estrada, pon­tif­i­cava um flam­boy­ant, ao qual chamá­va­mos de “som­brião” – de tal árvore veio a ficção de que se sua altura ultra­pas­sasse a da cumeeira da casa, seus pro­pri­etários mor­re­riam, durante anos tal sen­ti­mento me acom­pan­hou; à esquerda, ficava o cur­ral onde bois e vacas eram recol­hi­dos à noite.

Na frente da casa um outro depósito para se guardar arroz, um pouco mais adi­ante a casa dos “Bizun­gas” e, mais adi­ante, a casa de tia Mal­fisia, a mais velha das irmãs de meu pai. Entre a casa dos “Bizun­gas” e a de tia Mal­fisia, ficava a casa da prima Ciça, sua filha. Já –a “con­heci” viúva, morando nesta casa com a outro filha, prima Salete.

Logo depois do cur­ral descia uma ladeira íngreme com des­tino ao Igarapé de Pedrin­has que usamos para “escor­re­gar” usando con­chas de palmeiras como car­rin­hos de rolimã.

Olhei no entorno, nada mais estava lá – e já não estava lá há muito tempo –, ape­nas o igarapé, já mal­tratado pelo tempo e a serra, onde brin­cava de “pas­sar­in­har”, ainda restam.

Mas, tudo, pelo menos para mim, já deixara de exi­s­tir há muito tempo.

Foi em doze de agosto de 1973, um domingo, o último dia de con­vivên­cia com a minha mãe. Ainda no começo da noite ela começou com as “dores do parto”. No quarto sim­ples, que lem­bro ter um baú, o cofre de meu pai, em uma cama sim­ples ela deitada con­ver­sava com meu tipo Praxedes, seu irmão, que fora casado com minha tia Zefa, irmã de meu pai, que fale­cera, ainda con­fiando na lem­brança, de parto, há menos de um ano. Enquanto con­ver­savam, eu fazia todo tipo de per­altice para chamar a atenção, hora cor­ria para um lado, hora cor­ria para o outro, hora subia na sua cama, hora pren­dia os ded­in­hos na dobradiça do cofre …

Com olhar com­pas­sivo – só muito depois fui com­preen­der isso –, ela tudo assis­tia e dizia ao tio Praxedes: — um dia meu filho será um doutor para cuidar dos seus irmãos.

Foi assim até a hora que alguém levou-​me para dormir no quarto que dividia com a “titia”. Talvez com a rede de Ana Cleide, a caçula das mul­heres ao lado, com dois anos e meio ao lado. Acordei no meio da noite com o silên­cio impen­etrável daque­les dias sendo cor­tado pelo clamor, por diver­sos clam­ores. Da minha rede, ouvia o vozes e muito choro, muito choro.

Não sei quanto tempo fiquei lá, só ouvindo choros e sem saber o que tinha acon­te­cido.

Muito tempo depois, quando o dia aman­hecia, para o que seria a nova real­i­dade: a cama da minha mãe fora posta na sala, já com uma mor­talha branca, ela repousava sobre a mesma, ser­ena, sem vida, no des­canso para a eternidade.

Na sala cheia de gente, uns olhando pela janela, out­ros mais dis­tantes, pelo ter­reiro, todos chorando.

Minha mãe mor­rera no parto. O caçula sobre­viveu – difer­ente do que tinha ocor­rido a tia Zefa, pouco tempo antes em que ambos mor­reram –, e já era cuidado por alguém, alguma tia, alguma viz­inha.

A comu­nidade inteira – que não era grande e toda for­mada por par­entes ou ami­gos que vieram jun­tos na “expe­dição” de José Cal­heiro de Mar­inho, meu avô –, estava na nossa casa a teste­munhar mais essa tragé­dia em família.

Éramos mais nove órfãos na família – a mais velha, emb­ora já casada com um primo e com fil­hos, tinha pouco mais de vinte anos, os demais for­mavam uma “escad­inha” que ia de zero anos até quase vinte –, a se somarem aos fil­hos de tia Zefa, de tia Nelci, irmãs de meu pai, tam­bém mor­tas e com fil­hos órfãos.

Nos cinquenta anos seguintes, espal­ha­dos por casas diver­sas e fecha­dos nos próprios mun­dos, cada um enfren­tou as próprias e angústias.

Muito emb­ora essas lem­branças ten­ham me acom­pan­hado por toda vida, cada detalhe daquele último dia e, prin­ci­pal­mente, as dores dos dias e anos seguintes, voltar ao Cen­tro Novo é rea­cen­der e tornar mais inten­sos os sen­ti­men­tos, saudades, tris­teza, solidão, angustias …

Desde então se pas­saram cinquenta anos. valeram a pena? Tudo, já dizia o poeta, vale a pena, se a alma não é pequena.

As dores fiz­eram parte do “cresci­mento”, fizeram-​nos mais fortes, mais resilientes … a aceitar os desafios da vida sem medo ou temor.

Cer­ta­mente que nen­hum que­ria pas­sar por tais sofri­men­tos, mas deles não tive­mos como fugir, foi a imposição da vida.

São cinquenta anos de lem­branças, são cinquenta anos de saudade.

Abdon C. Mar­inho é advogado.