AbdonMarinho - A saga de José Calheiro de Marinho.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A saga de José Cal­heiro de Marinho.


A SAGA DE JOSÉ CAL­HEIRO DE MAR­INHO.

Por Abdon C. Marinho*.

AH, ABDON, mel­hor não tê-​lo con­hecido. O velho era muito igno­rante.

Assim meu irmão Armando referiu-​se, certa vez, ao nosso avô, José Cal­heiro, pai do nosso pai, em uma das nos­sas “palestras” de boca de noite quando vem por aqui.

Já é uma “quase” tradição, sem­pre que sai do inte­rior e vem pas­sar uns dias comigo, dedicamos um tempo con­ver­sando sobre as memórias famil­iares, sendo alguns anos mais velho e pos­suindo uma memória muito boa, vai me con­tanto as histórias dos nos­sos tios, pri­mos, fatos que se pas­saram quando ainda era muito novo ou mesmo ante­ri­ores ao meu nasci­mento.

Uma das últi­mas vezes, se não foi a última, ainda antes da pan­demia, nos ocu­pamos de fazer uma espé­cie de árvore genealóg­ica colo­cando, a par­tir dos nos­sos avós pater­nos, todos os nos­sos tios e tias e ainda os pri­mos dos quais lem­brá­va­mos e os seus fil­hos e até os fil­hos destes.

Sem­pre grat­i­f­i­cante a lem­brança dos tios e tias: tio Antônio; tio Fran­cisco (Chiquinho); tio Deolindo; tio João; tio Pedro; tia Mal­fisia; tia Fran­cisca (Chiquinha); tia Zulima; tia Josefa … seus fil­hos, netos, momen­tos tristes e ale­gres.

Sobre o nosso próprio ramo: meu pai Van­der­lino (que agora, por ocasião de pesquisas em doc­u­men­tos, desco­bri que orig­i­nal­mente chamava-​se ou encontra-​se reg­istrado como tal no cartório de Assú (Açú), como Wan­der Lin­dem ou erram lá quando o reg­is­traram ou aqui), ele de Angi­cos; e minha mãe, Neusa, nat­ural de Açú, casaram-​se na cidade dela no dia em que ela com­ple­tou 19 anos, em 1950.

Foi em tal ocasião que o querido irmão disse que o meu avô era muito rude.

É provável que fosse mesmo, ou que essa avali­ação tenha par­tido da per­cepção que temos hoje para avaliar fatos pretéri­tos ou, ainda, do fato do meu irmão ser muito jovem quando meu avô mor­reu.

Mas, cer­ta­mente, era um “velho” duro na queda, arro­jado e com um poder de comando sobre a família inques­tionável. Como, aliás, eram os chefes de família daquela época.

Outro dia, em um dos gru­pos de aplica­tivos da nossa família, uma bis­neta do meu avô per­gun­tou se alguém teria uma fotografia dele. Minha irmã mais velha lem­brou de uma fotografia que teríamos na casa de uma das nos­sas pri­mas, man­dou bus­car e pos­tou no grupo.

Foi quando, jun­tando uma infor­mação daqui ou dali, resolvi escr­ever sobre a saga do patri­arca.

Inde­pen­dente de ser rude ou igno­rante é certo que o José Cal­heiro tinha muita autori­dade per­ante sua família e a exer­cia com “mão de ferro”. Basta dizer que na segunda metade dos anos cinquenta do século pas­sado pas­sado decidiu que viriam para o Maran­hão, deixando para trás o sertão do Rio Grande do Norte, cas­ti­gado pela seca.

Ele e nossa avó, Maria Cal­heiro da Con­ceição, empreen­deram uma ver­dadeira epopeia, com uma dezena de fil­hos, noras, gen­ros, netos, e mesmo alguns ami­gos e par­entes desses que se jun­taram a nossa família para atrav­es­sarem, a pé, ou no lombo de ani­mais, a dis­tân­cia entre o inte­rior do RN ao inte­rior do MA, onde vieram fixar residên­cia.

A epopeia foi pro­gra­mada com ante­cedên­cia, mesmo porque não se desloca quase uma cen­tena de pes­soas (senão mais que isso), inclu­sive, dezenas de cri­anças com impro­vi­sos ou às cegas, sem saber por onde ir, onde parar, onde comer, beber, etc.

Meu avô, ape­sar de não ser letrado, assim como quase toda a família eram de anal­fa­betos, tinha dis­cern­i­mento das coisas.

Um ano antes (ou o que o valha), deter­mi­nou que tio Pedro Cal­heiro, na época com pouco mais de vinte anos, o mais novo da sua prole (um ano mais novo que o meu pai e o mais desas­nado dos fil­hos) que viesse em uma mis­são expe­di­cionária localizar o mel­hor lugar para aco­modar toda nossa família nas ter­ras do Maran­hão.

Assim foi feito, durante alguns meses tio Pedro per­cor­reu o estado enten­dendo que o mel­hor lugar seria o povoado Cen­tro Novo, entre Gov­er­nador Archer, Gonçalves Dias, Dom Pedro e que, naquela época, sofria influên­cia de uma das mais impor­tantes cidades do Maran­hão: Pedreiras.

Quando tio Pedro retornou da expe­dição – e podemos chamar assim pois em mea­dos dos anos cinquenta o inte­rior do nordeste só tinha em abundân­cia, a cor­agem do ser­tanejo, de resto fal­tava tudo, comida, estradas, água, comu­ni­cação, e tudo mais) –, ini­cia­ram os prepar­a­tivos para traz­erem a família de José Cal­heiro e Maria Cal­heiro da Con­ceição para o Maran­hão.

Um dia, no começo dos anos dois mil, algum com­pro­misso ou ape­nas uma viagem de pas­seio para rever os par­entes, me colo­cou na estrada.

Ao chegar no Povoado Inde­pendên­cia, disse ao meu par­ceiro de via­gens, seu Afrânio, entre aí, vamos até Pedreiras vis­i­tar tio Pedro. Chegando lá, disse que estava só pas­sando para tomar a bença e que estava indo para o Cen­tro Novo. Não se fazendo de rogado tio Pedro só disse: — Salete, arruma nos­sas coisas, vamos lá com Abdon, vis­i­tar os par­entes. Acomodaram-​se nos ban­cos tra­seiros do carro e seguimos para Gonçalves Dias e, de lá, para o Cen­tro Novo.

Esse era o tio Pedro, não per­dia uma opor­tu­nidade de se encon­trar com os irmãos, os sobrin­hos, os sobrinhos-​netos e parentada de uma forma geral.

Foi nessa opor­tu­nidade, no per­curso entre Pedreiras e o Cen­tro Novo que foi nos con­tando a história do nosso deslo­ca­mento do Rio Grande do Norte para o Maran­hão. Foi o último dos fil­hos de José Cal­heiro a nos deixar, já em 2011. Enquanto viveu, foi uma refer­ên­cia para vida de todos os irmãos e sobrin­hos, sobre­tudo, depois que aque­les se foram.

Quase todos os domin­gos tinha o hábito de me ligar para con­ver­sar­mos, me dava con­sel­hos, já advo­gado, me pedia alguma opinião. Her­dou do “velho” o poder de lid­er­ança e todos os fil­hos ou netos dos seus irmãos o tín­hamos como tal.

O meu avô e sua fil­harada eram nat­u­rais de Angi­cos — RN, na ver­dade de um povoado desse municí­pio que ainda hoje é muito pequeno, não con­tado com quinze mil habi­tantes, segundo dados do IBGE.

Imag­ino o impacto social naquela povoação o deslo­ca­mento de tan­tas pes­soas. Meu avô e sua esposa não deixaram nen­hum dos fil­hos para trás, do mais velho ao mais novo, todos deixaram o que “não” tin­ham e seguiram ao comando dos pais, junto com eles, já suas famílias, esposas, gen­ros, fil­hos e até mesmo out­ras pes­soas que resolveram se jun­tar à car­a­vana para bus­car vida mel­hor no Maran­hão.

Sem estradas e vin­dos a pé e com ani­mais, trazendo o pouco que pos­suíam – e o que dava para traz­erem em baús ou jacás –, empreen­deram a viagem para per­cor­rerem mais de mil quilômet­ros, pelo roteiro atual, mais rápido (imag­ino que nos anos cinquenta fos­sem out­ros cam­in­hos) enfrentando todo tipo de adver­si­dades.

As restrições de viagem eram tan­tas que outro dia soube que minha irmã mais velha – que na época da epopeia tinha cinco ou seis anos –, lem­brava que não pode trazer sua boneca de pano por falta de espaço.

Via­jando pelo inte­rior do nordeste, tendo que atrav­es­sar no mín­imo mais dois esta­dos, além do de origem e de des­tino, imag­ino o alvoroço que tal car­a­vana, com homens, mul­heres, cri­anças, ani­mais, deve ter provo­cado por onde pas­sava, muito emb­ora fosse comum deslo­ca­men­tos em car­a­vanas.

Assim, sob o comando de José Cal­heiro de Mar­inho, apor­ta­mos em ter­ras maran­henses onde cri­aram fil­hos e deixaram para a pos­teri­dade uma descendên­cia de pes­soas sérias, hon­es­tas e tra­bal­hado­ras.

A família Cal­heiro de Mar­inho, como disse ante­ri­or­mente, ficou rad­i­cada no Povoado Cen­tro Novo, tra­bal­hando como agricul­tores, depois, prin­ci­pal­mente, após a par­tida do “velho” fora se espal­hando para out­ros lugares, com destaque para Pedreiras, naquela época uma das mais prósperas do estado e tida como a “cap­i­tal do Mearim”.

A saga de José Cal­heiro de Mar­inho e Maria Cal­heiro da Con­ceição nos trouxe até aqui. Não somos só o que somos na atu­al­i­dade, tam­bém somos a nossa história, o nosso pas­sado, a história dos que vieram antes de nós. E por isso deve­mos honrá-​los.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.