AbdonMarinho - Os tribunais virtuais eternos.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Os tri­bunais vir­tu­ais eternos.


OS TRI­BUNAIS VIR­TU­AIS ETER­NOS.

Por Abdon C. Marinho*.

WEL­GER FREIRE dos San­tos, advo­gado dos mais bril­hantes do país e meu sócio há quase trinta anos, cos­tuma dizer que pen­sar não é arte fácil de se praticar e que exige certa ded­i­cação e concentração.

Dando razão a sua opinião, nos últi­mos dias tenho me ded­i­cado a refle­tir sobre as con­se­quên­cias soci­ais e jurídi­cas (pre­sentes e futuras) para um dos fenô­menos surgido na nossa era, e que temo pelo nosso futuro – não tando eu, pois se as estatís­ti­cas estiverem cer­tas minha pas­sagem por aqui, com sorte, não ultra­passa mais duas décadas –, mas, sobre­tudo, das ger­ações vin­douras.

Falo isso a respeito dos notórios tri­bunais vir­tu­ais, que com a conivên­cia e omis­são de muitos, por ignorân­cia ou má-​fé, vêm gan­hando sta­tus de eternos.

Um dos gênios incon­testáveis da humanidade, Albert Ein­stein, disse certa vez: “não sei como será a ter­ceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com pedras e paus”. Dizia isso notando que o pode­rio bélico da atu­al­i­dade (já assim em mea­dos do século pas­sado quando mor­reu) é tamanho destru­iria tudo em seu cam­inho, rel­e­gando o homem ao seu estado prim­i­tivo.

Com os tri­bunais vir­tu­ais eter­nos, dar-​se algo bem pare­cido. Evoluí­mos tanto tec­no­logi­ca­mente que esque­ce­mos os fun­da­men­tos do con­hec­i­mento analógico e até mesmo de como cheg­amos aqui.

Ora, até bem pouco tempo era nor­mal a tor­tura física e psi­cológ­ica, os cas­ti­gos cor­po­rais, o “olho por olho, dente por dente”, do código de Tal­ião, a cru­ci­fi­cação, os empala­men­tos e diver­sos out­ros cas­ti­gos cruéis e degradantes, inclu­sive, que as penas pas­sasse das pes­soas que come­teram os deli­tos, para seus famil­iares, fil­hos, pais e por ger­ações; era comum que se jogasse um con­de­nado no poço e que o esque­cessem por lá até que mor­resse.

Muitas das penas relatadas acima – e out­ras quem nem ouso imag­i­nar –, per­sis­tem em algu­mas ditaduras e/​ou regimes total­itários ao redor do mundo. Onde, o Estado usa do seu pode­rio para oprimir e mas­sacrar o seu povo e os inimi­gos pes­soais dos poderosos ou mesmo aque­les que ape­nas ousam diver­gir.

Quando estu­dante de dire­ito, aprendi com o mestre Alberto Tavares, que as inter­pre­tações das leis dev­e­riam ser feitas com o que chamava de “grano salis”, ou seja, com parcimô­nia ou mod­er­ação e, tam­bém, que as nor­mas legais dev­e­riam ser com­patíveis com o entendi­mento da sociedade a quem se dire­cionava, é dizer, estarem ao alcance da com­preen­são do “homem médio”, do cidadão comum, e, ainda, que a lei não era sucedâ­neo para vin­gança pri­vada ou estatal.

E a razão de ser assim é que qual­quer cidadão pode ser sujeito ativo do crime. Não existe “cidadão de bem” que em algum momento da vida seja imune ao crime.

Outro grande jurista maran­hense, João Dam­a­s­ceno Mor­eira, o saudoso Bazar, crim­i­nal­ista de mão cheia, sem­pre que me encon­trava e, notada­mente, quando o per­gun­tava sobre suas ativi­dades lab­o­rais na seara crim­i­nal excla­mava, parafrase­ando out­ros grandes crim­i­nal­is­tas: — excelên­cia, o crime persegue o homem como sua própria som­bra!

A Con­sti­tu­ição Fed­eral de 1988, em boa hora, trouxe diver­sas garan­tias aos cidadãos sujeitos ativos de crimes, con­forme podemos ver­i­ficar abaixo, e que acho rel­e­vantes para o pre­sente texto:

III — ninguém será sub­metido a tor­tura nem a trata­mento desumano ou degradante;

XXXIX — não há crime sem lei ante­rior que o defina, nem pena sem prévia com­i­nação legal;

XL — a lei penal não retroa­girá, salvo para ben­e­fi­ciar o réu;

XLV — nen­huma pena pas­sará da pes­soa do con­de­nado, podendo a obri­gação de reparar o dano e a dec­re­tação do perdi­mento de bens ser, nos ter­mos da lei, esten­di­das aos suces­sores e con­tra eles exe­cu­tadas, até o lim­ite do valor do patrimônio transferido;

XLVI — a lei reg­u­lará a indi­vid­u­al­iza­ção da pena e ado­tará, entre out­ras, as seguintes:

a) pri­vação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alter­na­tiva;

e) sus­pen­são ou inter­dição de dire­itos;

XLVII — não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declar­ada, nos ter­mos do art. 84, XIX;

b) de caráter per­pé­tuo;

c) de tra­bal­hos forçados;

d) de bani­mento;

e) cruéis;

Pois bem, fiz todas essas con­sid­er­ações para aden­trar no assunto que motivou minha reflexão sobre a existên­cia de tri­bunais eter­nos, que ape­sar de vir­tu­ais exe­cu­tam penas reais nas vidas das pes­soas que come­teram crimes e/​ou fal­has com con­se­quên­cias diver­sas para seus famil­iares muitos dos quais nem exis­tiam na época dos dos fatos.

O caso que des­per­tou minha atenção e que cai como uma luva sobre os tri­bunais vir­tu­ais eter­nos é o que envolve o téc­nico de fute­bol Cuca.

Nos últi­mos dias, por conta de sua con­tratação por um clube de fute­bol – a despeito de ter sido téc­nico de out­ros grandes clubes ao longo da car­reira –, teve a sua vida, a vida de sua família e mesmo a vida dos seus com­pan­heiros de infortúnio e de suas famílias viradas de ponta cabeça por conta de um crime cometido em 1987 e pelo qual foram con­de­nado, dois anos depois, 1989, a 15 meses de prisão, em Berna, Suíça.

Emis­so­ras de rádio, tele­visão, sites, redes soci­ais, for­maram um novo tri­bunal para revis­i­tar o caso, com tanto destaque, que o cidadão que come­teu o crime (grave) foi obri­gado a pedir demis­são do clube – e não sabe, depois da reper­cussão do caso, se achará outro emprego em algum lugar do país como treinador, sendo mais provável que mude ramo ou se aposente.

O crime de estupro sob qual­quer cir­cun­stân­cia é abom­inável, ainda mais se prat­i­cado em grupo e con­tra uma menor de idade – que é o caso, ou seja, inde­s­culpável sob todos os aspectos.

Mas, vejam, os cidadãos brasileiros foram jul­ga­dos nos moldes das leis suíças e rece­beram pena de 15 meses de prisão, o que, em quase todo lugar do mundo, não leva ninguém à prisão, sendo quase sem­pre sub­sti­tuída por alguma restrição de dire­ito ou multa.

Como o processo seguirá em seg­redo de justiça por mais algu­mas décadas, além das infor­mações de ter­ceiros, imag­ino, pela pena apli­cada (15 meses) que a con­duta dos con­de­na­dos tenha sido pro­por­cional a ela.

O que fez o tri­bunal vir­tual eterno? Pegou a con­duta de 1987 (grave, abom­inável, etc), trouxe para os dias atu­ais, apli­cou a pena da leg­is­lação brasileira e a “exe­cuta” de forma per­ma­nente con­tra os cidadãos brasileiros que a praticaram, com os efeitos da mesma sobre seus famil­iares e amigos.

Vejam, não estou dizendo que o crime não ocor­reu, que não foi grave, que não foi abom­inável, hor­rendo e tudo mais, o que estou dizendo é que a Con­sti­tu­ição Fed­eral proíbe pena de caráter per­pé­tuo ou que as penas passem das pes­soas dos con­de­na­dos, como estão tratando o caso, sem que ninguém (ou quase ninguém) se atente para ordem jurídica.

Em 1987 ainda cur­sava o ensino médio no Liceu Maran­hense, em 1989, fazia cursinho pré-​vestibular e já tendo se pas­sado 34 anos da con­de­nação, os efeitos daquela con­de­nação de 15 meses de prisão con­tinua a pro­duzir efeitos con­tra aque­les con­de­na­dos.

Ora, mesmo que o cidadão tivesse con­de­nado por homicí­dio, matado a mãe (crime mais grave do orde­na­mento jurídico brasileiro) 34 anos depois, já teria pago “sua dívida para com a sociedade”.

Ao meu sen­tir, não faz sen­tido que uma con­de­nação de 15 meses con­tinue a pro­duzir efeitos até hoje e até con­tra out­ras pes­soas, fil­hos dos con­de­na­dos, que sequer exis­tiam na época dos fatos.

O meu alerta e o meu temor é que o prece­dente “Cuca”, se torne a nova bal­iza das relações jurídi­cas nacionais – essa é a razão das min­has reflexões –, violando garan­tias con­sti­tu­cionais que muito nos cus­taram alcançar.

Imag­inemos que um cidadão, com dezoito ou vinte anos, cometa qual­quer deslize ou falha ou mesmo cometa um crime, ele e seus par­entes e ami­gos terão que con­viver sob os efeitos de tal mácula por toda a eternidade? Se assim for, essa não é uma pena de caráter per­pé­tuo, cruel e não está pas­sando para além da pes­soa do con­de­nado, coisas vedadas pela Constituição?

Imag­inemos, como dizem os mais sábios que eu, sujeito ativo nato para o come­ti­mento de algum delito ou mesmo qual­quer falha ou impro­bidade, pelo prece­dente do tri­bunal vir­tual eterno, não terá mais qual­quer chance de reabil­i­tação pelo resto da sua vida bas­tando que erre ou seja con­de­nado ou mesmo proces­sado por algum fato, em qual­quer momento de sua existên­cia.

O TVE sem­pre estará à espre­ita. Fulano de tal, quando tinha 18 anos envolveu-​se em um aci­dente trân­sito, foi acu­sado de tal crime; Bel­trano de tal: — ah, esse é filho de fulano de tal, que em mil nove­cen­tos e carne de porco, come­teu crime tal, “deleta”.

Já pen­saram que situ­ação exdrúx­ula é essa que vive­mos? É isso mesmo que quer­e­mos para nós e para nossa descendência?

Essas são algu­mas das min­has reflexões, antes de me con­denarem por elas, tam­bém, refli­tam: quem nunca …?

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.