AbdonMarinho - Um preto no teatro e o racismo no Brasil.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Terça-​feira, 03 de Dezem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Um preto no teatro e o racismo no Brasil.


UM PRETO NO TEATRO E O RACISMO NO BRASIL.

Por Abdon C. Marinho*.

UMA FOTOGRAFIA. Vi a fotografia do amigo Soeiro (José Raimundo Pereira Soeiro), uti­lizada no seu per­fil de uma rede social ambi­en­tada no “nosso” teatro Arthur Azevedo. Quando ele me ligou para tratar de questões rela­cionadas aos tra­bal­hos que temos em comum, além de falar da sua cos­tumeira elegân­cia na foto de per­fil, comentei do alcance histórico que me des­per­tou aquela imagem, a ponto de moti­var a escr­ever um texto sobre o assunto.

Observei que a importân­cia histórica da sua pre­sença no teatro prendia-​se ao fato de, durante sécu­los, no Brasil – e, tam­bém, no mundo –, aque­les ambi­entes terem sido, essen­cial­mente, ambi­entes “bran­cos”.

Em out­ras palavras, em todo mundo, Brasil inclu­sive, o teatro sem­pre foi o “tem­plo cul­tural” da elite dom­i­nante, branca, empoada, abas­tada.

Pes­soas pre­tas no teatro, no máx­imo pas­savam na porta ou eram escal­adas para os serviços de limpeza, manutenção ou, quando muito, uma ponta em alguma peça, ence­nando os tipos des­ti­na­dos à cor da pele, como escravos, ser­vos ou empre­ga­dos domés­ti­cos dev­i­da­mente far­da­dos com uni­formes bran­cos.

As exceções, quando exis­tentes, ape­nas tin­ham ou têm o condão de jus­ti­ficar a regra.

Daí a importân­cia de se saudar e lou­var a pre­sença de um preto no teatro como plateia. Como um cidadão igual a todos os demais.

Na con­versa, Soeiro aproveitou para dizer-​me que fora ao teatro pres­ti­giar uma peça sobre a can­tora Alcione Nazaré, a nossa “mar­rom” e que, na peça, uma grande parte dos seus atores são negros.

Cer­ta­mente alguns leitores – ou não –, irão ques­tionar o fato de ter trazido para o tex­tão do fim de sem­ana a pauta do racismo. Alguns, até dirão, que estou sendo “racista” ao saudar como histórica a pre­sença de um preto no teatro, pois, não sendo o Brasil um país racista, qual o sen­tido da saudação ou “estran­hamento”?

O Brasil padece de alguns males, den­tre eles, a negação e/​ou o auto-​engano.

Uma negação ou auto-​engano, prin­ci­pal­mente, da parte de pes­soas que se dizem esclare­ci­das é essa, de negar o racismo exis­tente no país, inclu­sive, aquele racismo estru­tural, que “fun­ciona” como se fosse insti­tu­cional e que ten­tam escon­der ou escamotear todos dias como se ele não exis­tisse.

Certa vez um amigo me rela­tou que estando na acad­e­mia do con­domínio onde morava ainda recente, foi sur­preen­dido pela pre­sença do segu­rança no ambi­ente, suposta­mente, por está sem más­cara. Ele perce­beu, ainda que o segu­rança, que o con­hecia não lhe tenha dito, que na ver­dade aquela “viz­inha” achava que aquele ambi­ente não era para ele, que pode­ria ser “algum pen­e­tra” den­tro do con­domínio usando a acad­e­mia.

Tal situ­ação em muito se assemelha aquela de deter­mi­nada autori­dade, que, para dizer que não era racista, apre­sen­tou as empre­gadas domés­ti­cas de sua casa, pre­tas, como sendo “as donas da sua casa”.

Muitos podem até achar que não são racis­tas, mas ao tentarem colo­car as pes­soas den­tro de deter­mi­na­dos espaços soci­ais e de tra­balho estão sendo.

Ora, não sou racista mas acho muito estranho um negro na acad­e­mia do “meu” con­domínio; ou não sou racista, min­has domés­ti­cas são negras.

Mesmo o racismo que ocorre à vista de todos, como o caso daquela agressão de uma mul­her branca a uma mul­her preta, chamando-​a de fedida ou que seu cabelo “era ruim”, etc.; ou da outra preta que teve uma com­pra recu­sada em razão da dona da loja recusar-​se a vender a ela por conta de sua cor, além das diver­sas ofen­sas; ou os reit­er­a­dos casos ocor­ri­dos nos está­dios de fute­bol onde tor­ci­das orga­ni­zadas ou não agri­dem deter­mi­na­dos jogadores em razão da cor da sua pele, e tan­tos out­ros casos patentes de racismo.

Mesmo nesses exem­plo que des­per­tam repul­sam no momento em que ocor­rem, logo depois, começam a escamotear ou a “colo­car panos quentes” para livrar a cara dos racis­tas.

Durante muitos anos usaram o cam­inho da desqual­i­fi­cação do crime. Como o crime de racismo, nos ter­mos da Con­sti­tu­ição é impre­scindível e inafi­ançável, dizia-​se que os crimes, se ocor­ri­dos, teriam sido meras “injúria racial”, e diver­sos out­ros argu­men­tos de igual valia.

O Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, em boa hora, endure­ceu a inter­pre­tação, dando a tais crimes e a inúmeros out­ros o mesmo trata­mento, como no caso da homo­fo­bia, trans­fo­bia e tan­tos out­ros rela­ciona­dos à condição sex­ual da vítima.

Ape­sar disso – não sei se por conta da vis­i­bil­i­dade que os fatos pas­saram a ter com o advento dos celu­lares, inter­net, etc. –, não tem um dia, uma hora que não nos deparamos com um exem­plo de agressão racial ou em razão da condição sex­ual das pes­soas.

Vive­mos em uma sociedade doente em que tudo é motivo para descar­regar suas frus­trações e covar­dias. Quase sem­pre fazem isso con­tra pes­soas que jul­gam ser infe­ri­ores a elas ou que não dev­e­riam ocu­par o mesmo espaço que elas ou usando seus dis­cur­sos de ódio como fer­ra­menta de pro­moção pes­soal ou para gan­harem din­heiro. Sim, assim como existe um público de doentes que “con­somem” pornografia infan­til ou ped­ofilia, exis­tem o público con­sum­i­dor para os dis­cur­sos de ódio con­tra mul­heres, negros, judeus, homos­sex­u­ais, tran­sex­u­ais, etcetera.

O exem­plo de grande reper­cussão mais recente de dis­curso de ódio para fins políti­cos foi o pro­ferido por dep­utado fed­eral mineiro, o mais votado do Brasil, pro­ferido na Câmara dos Dep­uta­dos, no Dia Inter­na­cional da Mul­her, que, como dito acima, é tam­bém uma vítima pref­er­en­cial de uma série de vio­lên­cias.

No caso do dep­utado fed­eral, poder-​se-​ia ale­gar que sua vio­lên­cia con­tra os tran­sex­u­ais na tri­buna do par­la­mento é decor­rente de sua ignorân­cia por conta da pouca idade.

Na ver­dade, não é isso. O Brasil, nos últi­mos anos, tem vivido a cruel exper­iên­cia de cul­tuar diver­sos tipos de ódio pelos motivos mais banais, mas que ren­dem div­i­den­dos, sejam eles finan­ceiros, sejam eles políti­cos.

E retor­namos ao racismo explíc­ito ou estru­tural exis­tente no Brasil e que cor­rob­ora com a intenção de ganho finan­ceiro e/​ou político.

Ainda reper­cute na mídia, a oper­ação poli­cial que res­ga­tou cerca de 200 tra­bal­hadores de uma situ­ação análoga à escravidão.

Análoga é uma espé­cie de eufemismo para o que foi rev­e­lado. Soube-​se que os tra­bal­hadores eram man­ti­dos apri­sion­a­dos, sob sev­eras ameaças de morte e em condições abso­lu­ta­mente insalu­bres.

Destes tra­bal­hadores ficou-​se sabendo que mais 90% (noventa por cento) eram negros.

Vem cá, existe alguma difer­ença sig­ni­fica­tiva entre a real­i­dade destes tra­bal­hadores com a real­i­dade do régime escrav­ocrático vigente no país até 1888?

Ao meu sen­tir a difer­ença é que se pas­saram 135 anos desde a Abolição da escra­vatura, o que torna a prática, nos dias atu­ais, ainda mais abom­inável.

Mais infamante que as práti­cas relatadas acima, só mesmo o fato de haver pes­soas “do bem” cul­pando as víti­mas ou não fazendo qual­quer exame de con­sciên­cia sobre o ocor­rido, como fez o vereador do Municí­pio de Bento Gonçalves, ao tratar do assunto na tri­buna do par­la­mento munic­i­pal; ou os donos das viní­co­las muitas delas pre­mi­adas nacional e inter­na­cional­mente e estre­lasse pro­gra­mas de tele­visão, não dando “a mín­ima” para aque­las pes­soas que, com seu tra­balho, as colo­cam em destaque.

O Brasil pre­cisa se reen­con­trar com decên­cia. Não é con­ce­bível que ainda ten­hamos que con­viver com o racismo, com os pre­con­ceitos e com todo tipo de intolerância.

O respeito ao próx­imo dar-​se por sua condição humana (exten­siva, tam­bém aos ani­mais) e deve pre­ceder a todas as demais. Não é a cor da pele, o gênero, a condição física ou psi­cológ­ica, a condição sex­ual, etcetera que devem deter­mi­nar o espaço de cada um ou as opor­tu­nidades a serem dis­pen­sadas a eles.

Todos são iguais per­ante a lei, sem dis­tinção de qual­quer natureza, garantindo-​se aos brasileiros e aos estrangeiros res­i­dentes no País a invi­o­la­bil­i­dade do dire­ito à vida, à liber­dade, à igual­dade, à segu­rança e à pro­priedade, con­forme pre­ceitua a nossa Carta Magna no seu artigo 5º.

Por uma sociedade com mais igual­dade para todos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.