AbdonMarinho - Quem “herdará” os mortos da pandemia?
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Quem “her­dará” os mor­tos da pandemia?

QUEMHER­DARÁOS MOR­TOS DA PANDEMIA?

Por Abdon Marinho.

LEM­BRAVA daquela famosa “tirada” do ex-​deputado Mar­cony Farias por ocasião da sua inquir­ição na CPI da Pis­to­lagem, na Assem­bleia Leg­isla­tiva do Maran­hão, ainda pelos idos dos anos noventa.

Já con­tei o episó­dio aqui em algum texto. Para os que não lem­bram ou não tiveram a opor­tu­nidade de ler, nar­rarei – mas de forma mais resum­ida –, o episó­dio.

Já era final da tarde, começo da noite, quando, no auditório Fer­nando Fal­cão, da Assem­bleia Leg­isla­tiva, que ainda fun­cionava no antigo pré­dio da Rua do Egito, começou a oitiva do ex-​deputado.

O inquiri­dor era o então dep­utado Ader­son Lago.

O dep­utado Ader­son Lago ini­cia a inquir­ição: — Sen­hor dep­utado, o sen­hor sabe quem é Fulano de tal?

— Sei, sim, muito meu amigo. Já mor­reu. Responde Mar­cony Farias.

— E Sicrano de tal?

— Tam­bém con­heci, muito meu amigo, mas já morreu.

— E o Bel­trano dos Anzóis?

— Ah, esse era filho seu Sicrano, muito meu amigo, tam­bém morreu.

E sim foi por quase uma dúzia de nomes, o dep­utado Ader­son Lago per­gun­tando e o ex-​deputado Mar­cony Farias respon­dendo que con­hecera, que fora amigo, que mor­rera…

Todos os mor­tos – ou quase todos –, por óbvio, tin­ham lig­ações com crimes de pis­to­lagem e tin­ham mor­rido, invari­avel­mente, de morte violenta.

O dep­utado Ader­son Lago, per­gunta em con­clusão: — Dep­utado Mar­cony Farias, o sen­hor não acha muita coin­cidên­cia que todos estes seus ami­gos este­jam mortos?

O ex-​deputado Mar­cony Farias, responde com sua inigualável pre­sença de espírito: — Acho não, sen­hor dep­utado. Tanto assim que tenho mais ami­gos vivos que mor­tos.

O auditório lotado naquele fim de tarde foi ao delírio com a resposta espir­i­tu­osa do ex-​deputado.

Pois bem, lem­brei de tal episó­dio para tratar do avanço da pan­demia do novo coro­n­avírus no Brasil, o seu sig­ni­fica­tivo número de óbitos, e a única resposta que será pos­sível às autori­dades do país quando forem cobradas lá adi­ante.

Não como a tirada espir­i­tu­osa do ex-​deputado Mar­cony Farias, mas com o cin­ismo tão car­ac­terís­tico dos dias atu­ais, poderão dizer que não mor­reram assim tan­tos brasileiros por conta da pan­demia, afi­nal, “escaparam” mais brasileiros vivos do que mor­reram.

Aguar­dem que ainda nos depararemos com este tipo de resposta.

O Brasil enfrenta um momento difí­cil, talvez o mais difí­cil em mais de uma cen­tena de anos.

Já ocupá­va­mos o segundo lugar em número de con­tá­gio – só per­dendo para os Esta­dos Unidos –, com quase um mil­hão de infec­ta­dos e o ter­ceiro em número de óbitos. Agora, pas­sando na casa dos quarenta mil óbitos, somos o segundo tam­bém neste item, só per­dendo para a nação já referida acima.

Os estu­diosos – que têm acer­tado quase todas suas pro­jeções –, infor­mam até a data em que pos­sivel­mente ultra­pas­sare­mos a nação norte-​americana, tanto no número de infec­ta­dos: será no dia 29 de julho.

Nesta fatídica data futura os Esta­dos Unidos con­tará com 137 mil óbitos e o Brasil a ultra­pas­sará com 137.500 óbitos. Ou seja, daqui a pouco mais de um mês ao número de mor­tos que temos hoje, será acrescido cerca de 150% (cento e cinquenta por cento) novos óbitos.

Não sig­nifica que vamos parar aí, ape­nas que ultra­pas­sare­mos os Esta­dos Unidos e que con­tin­uare­mos a perder mil­hares de vidas de brasileiros até a pan­demia arrefe­cer.

Até aqui tudo que um país podia fazer de errado para com­bater uma pan­demia o nosso país fez, e pior, con­tinua fazendo.

Esta­mos na décima segunda (ou ter­ceira) sem­ana de pan­demia e, enquanto a maio­ria dos países que fiz­eram o “dever de casa” na sexta sem­ana os casos começavam arrefe­cer e curva se achatar, aqui con­tin­u­amos com a curva de con­tá­gio em ascen­são.

Com tudo que já fiz­eram de errado e com estes prognós­ti­cos tão des­fa­voráveis as autori­dades chegaram a “con­senso macabro”, con­trar­iando ori­en­tação de quem entendo assunto decidi­ram que é a hora do “liberou geral” ou, noutras palavras, “salve-​se quem puder”.

A única coisa de pos­i­tivo – se é que podemos ter algo de pos­i­tivo em meio a tanta tragé­dia –, é a nossa curva de cura que, tam­bém, é bas­tante ascen­dente, tendo inclu­sive ultra­pas­sado o número de casos ativos.

Mas isso não minora a nossa irre­spon­s­abil­i­dade na con­dução desta crise.

Enquanto mor­riam dezenas de pes­soas na Ásia diziam que não chegaria aqui; quando avançou pela Europa e pelos Esta­dos Unidos, negavam a existên­cia do vírus ou min­i­mizavam, com o vírus já matando no país, diziam que era exagero que não havia nada demais, em seguida que dev­eríamos nos conformar.

Há poucos dias, enquanto a Nova Zelân­dia anun­ci­ava que havia curado o der­radeiro infec­tado e ban­ido o vírus do arquipélago, no Brasil a polêmica da vez era divul­gar ou não ou como divul­gar o número de mor­tos e infe­ta­dos pelo novo coro­n­avírus.

Já se con­tava mais de trinta mil óbitos e a polêmica era essa. Mil­hares de pes­soas no país sofrendo pela perda de seus entes queri­dos e as autori­dades fazendo “cav­alo de batalha” sobre o for­mato de divul­gação das estatís­ti­cas. Esque­cendo que por trás de cada morto tem uma família, tem ami­gos, tem pes­soas que perderam alguém amado.

Pas­sando dos quarenta mil óbitos, menos de uma sem­ana depois, a polêmica foi a “recomen­dação” de “invasão” de hos­pi­tais para ver­i­ficar trata­men­tos e se as pes­soas estão mor­rendo ou não ou se os leitos hos­pi­ta­lares estão des­ocu­pa­dos ou não.

Há poucos dias um ex-​quase-​futuro servi­dor do Min­istério da Saúde – que está sem tit­u­lar há mais de mês –, deu a bril­hante ideia de se fazer o censo dos mor­tos pela pandemia.

Com a notí­cia estapafúr­dia de alguém que ainda não era nada (e acabou não sendo) no “jogo do bicho”, a pop­u­lação, prin­ci­pal­mente, as pes­soas que perderam seus par­entes e ami­gos, ficou escan­dal­izada com a pos­si­bil­i­dade desta dor adi­cional, supondo que fos­sem desen­ter­rar os mor­tos para checar se, de fato, o morto fora vítima ou não da covid-​19.

A elas não bas­tariam ficar afas­tadas dos seus entes durante o trata­mento, não poderem fazer um velório – se bem que vimos pes­soas ofer­e­cendo velórios no câm­bio para­lelo –, teriam que teste­munhar a vio­lação de suas sepul­turas para con­fir­mar a “causa mor­tis” e servirem de ban­deiras políti­cas.

Vejam o absurdo ao qual cheg­amos: no ano em que não con­seguimos fazer o censo dece­nal por conta de uma pan­demia, alguém propõe o “censo fúne­bre” dos mor­tos da pan­demia – e isso é lev­ado a sério. Pes­soas dis­cutem, acham relevante.

A impressão que tenho é que o Brasil – muito além do que teria dito de Gaulle (Charles André Joseph Marie de Gaulle, ex-​primeiro-​ministro francês), que o país não seria sério –, virou um imenso hos­pí­cio, onde se min­i­mizam mortes e o sofri­mento alheio, como se fosse a coisa mais nat­ural do mundo.

Recebo, vez ou outra, infor­mações anôn­i­mas, com quadros com­par­a­tivos entre o número de mor­tos no Brasil e na Europa levando em con­sid­er­ação o número de habi­tantes e mor­tos como a quer­erem jus­ti­ficar que nos­sas dezenas de mil­hares de mor­tos fos­sem pouco, se com­para­dos a nossa pop­u­lação de 210 mil­hões de habi­tantes.

Há pouco mais de dois meses o próprio pres­i­dente da República, nas suas redes soci­ais, por onde se comu­nica com seu público, fez essa com­para­ção estúp­ida, quando o número de mor­tos no Brasil era oito por mil­hão de habi­tantes. Hoje já são duzen­tos por mil­hão.

Out­ros, abu­sando da cru­el­dade, quando não negam, jus­ti­fi­cam que a morte pela pan­demia alcançou um idoso, um obeso, um car­diopata, um renal crônico, um trans­plan­tado, etc., como se a abre­vi­ação da vida destas pes­soas – que teriam mais cinco, dez, quinze ou vinte anos com os seus –, não tivesse importân­cia alguma.

Como se o cara mere­cesse mor­rer por ser gordinho, por ter uma doença lig­ada s obesi­dade, por ter um prob­lema renal ou car­dio­vas­cu­lar, por ser idoso, etc.

Outro dia soube que alguém do Min­istério da Econo­mia teria saudado como promis­sora está pan­demia porque “aliviaria” o déficit prev­i­den­ciário.

Achei a notí­cia tão absurda que não fui checar – temendo que fosse verdadeira.

Muito além da pan­demia, o Brasil sofre de uma grave doença moral.

É como se a nação, por suas con­veniên­cias políti­cas e/​ou ide­ológ­i­cas, fosse for­mada por sociopatas.

Algum dia, talvez quando isso tudo pas­sar, ter­e­mos um encon­tro com a ver­dade que irá cobrar a respon­s­abil­i­dade de cada um nesta pan­demia.

Quan­tas mortes pode­riam ter sido evi­tadas e não foram? Quan­tos lares ficaram órfãos pela leniên­cia ou irre­spon­s­abil­i­dade das autori­dades? Quem será ou serão ou respon­sáveis?

Vejo que muitas autori­dades – e seus seguidores –, já bus­cam apon­tar o dedo para os out­ros, inclu­sive para as viti­mas (a sociedade), querendo fugir à própria respon­s­abil­i­dade.

Ainda não é a hora do jul­ga­mento, mas todos serão jul­ga­dos: pelas urnas, por suas con­sciên­cias, pelo tri­bunal da história e por Deus.

A todos estes não lhes valerão o argu­mento de escaparam mais do que mor­reram.

Algum dia saber­e­mos quem her­dará os mor­tos desta pan­demia.

Abdon Mar­inho é advo­gado.