Loucura pandêmica
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- Criado: Domingo, 05 Abril 2020 21:55
- Escrito por Abdon Marinho
LOUCURA PANDÊMICA.
Por Abdon Marinho.
ALGUÉM já disse – não me recordo se ouvi, li ou imaginei –, que toda cidadezinha do interior que se preze precisa ter seus tipos folclóricos: o bêbado oficial; o doido oficial; as beatas oficiais, e por aí vai.
Quando deixei o povoado onde nasci, lá pelo final dos anos setenta, fui para Governador Archer. Muito novo, não lembro bem de intensificar estes tipos por lá, talvez, apenas as irmãs Leonel se encaixe no perfil.
O mesmo não aconteceu quando mudei-me para Gonçalves Dias, onde fiquei até o início de 1985.
Das minhas lembranças daquele começo dos anos oitenta, pelo menos um dos tipos típicos tínhamos de forma inquestionável: o doido oficial.
O nosso doido oficial naquele tempo era o Seu Romeiro, assim chamado, creio eu, por sua devoção ao Padre Cícero – nunca soube o seu nome de batismo, só o chamávamos de Romeiro, como se fosse nome próprio.
Era um senhorzinho baixo, de idade indefinida, sempre bem vestido, de calças compridas, sapatos e camisa manga longa, diversos rosários no pescoço.
Andava sempre com uma valise onde carregava papéis diversos e um cajado quase da mesma altura que ele, adornado com diversas fitas e outras bugingangas.
A sua loucura era apresentar-se como o homem mais rico do mundo, sua fortuna não era calculada em milhões ou bilhões, mas em «quadrilhões» ou “quinquilhões”. Era dinheiro, ouro, jóias, propriedades, tudo incalculável pelos comuns mortais.
Saia de casa cedo e passava o dia andando a cidade, ia aos lugares mais distantes, parava aqui e ali, mas o resto do tempo percorrendo a cidade, dando razão ao dito popular: “andava mais que juízo de doido”.
Nas suas paradas, se alguém lhe falava de alguma necessidade, ele abria a valise, pegava um pedaço de papel previamente formatado e fazia um cheque de alguns milhões para a pessoa. Dinheiro, para ele, não era problema.
Suas “cismas» eram se alguém questionasse sua riqueza, e outra, que não sei se motivada por racismo, contra Pelé – ele mesmo, o astro do futebol.
Ai de alguém dizer que o Pelé era mais rico do que ele. Avançava sobre o atrevido com seu cajado.
Fora isso tirava os dias sem ofender ninguém fazendo cálculos mentais de sua fortuna imaginária.
Bastava que ninguém se “trocasse” com ele ou açulasse suas contrariedades que tudo estaria bem.
Nestes dias de quarentena, por conta da pandemia do coronavírus – e também por causa dela –, tenho refletido sobre a loucura, sobretudo, sobre a loucura pandêmica que toma conta do país.
Aqui, diferente da loucura do seu Romeiro, ela causa estragos, provoca mortes e danos à vida das pessoas.
O país, capitaneado por seu presidente – tendo diversos governadores como coadjuvantes –, vive um clima de loucura pandêmica.
Os cidadãos, não temos apenas que enfrentar a pandemia do coronavírus, somos obrigados a conviver a loucura e a insensatez dos governantes.
Em textos anteriores cobrei sensatez e racionalidade. Até aqui, da parte das pessoas que detêm o poder político emanado das urnas, temos visto o contrário.
Em qualquer lugar, em qualquer tempo, diante de uma pandemia, vemos as autoridades, ainda que momentaneamente, se darem as mãos para enfrentar um inimigo comum – e maior.
Aqui, assistimos que a pandemia – que já ceifou milhares de vidas ao redor do mundo e algumas centena no nosso país –, se tornou mais um pano de fundo e/ou combustível para a disputa entre aquele que está na presidência da República e os diversos postulantes que sonham em chegar lá.
O comportamento, igualmente horroroso, do presidente da República e dos “governadores-candidatos”, envergonha os cidadãos de bem e não encontra paralelo nas demais espécies da natureza.
O que vemos na natureza é que quanto há um incêndio na floresta predadores e presas não param para resolverem suas “contendas”, antes, têm a compreensão de que o fogo é o inimigo comum, e correm lado a lado na busca da salvação.
Os “humanos” brasileiros não têm essa compreensão, em meio a uma das maiores tragédias a afetar a humanidade, se achando protegidos por suas posses ou pela certeza que serão bem atendidos caso adoeçam, tripudiam da dor daqueles que estão perdendo seus entes queridos com uma disputa insana.
Vemos até governador-candidato obcecado pelo presidente – tal qual o seu Romeiro era pelo Pelé –, se ocupando em contar os mortos (e, talvez torcendo por seu aumento) que hipoteticamente amanheceriam na porta do presidente da República.
O maior inimigo da sociedade brasileira no momento não é apenas o coronavírus é, também, esse comportamento rasteiro das “autoridades”.
Em plena crise, ao invés de se entenderem, governistas e oposicionistas, se alimentando da própria mediocridade, passam os dias trocando insultos através das redes sociais e dos demais veículos de comunicação.
Nada contra que se odeiem – e que matem, se assim quiserem –, mas deixem isso para o futuro, para depois da pandemia. Podemos, até, defender uma lei que permita essa gente a resolver seus conflitos através de duelos públicos.
Já que não conseguem ser civilizados nem mesmo durante uma pandemia, a linguagem das armas talvez consigam entender.
Vejam, nenhum dos lados, que infelizmente tentam tirar dividendos políticos em cima de uma tragédia humana de tamanha dimensão, tem razão e os seus representantes deviam ter vergonha.
O comportamento destes políticos é digno de vergonha.
Assim como envergonha a raça humana todos aqueles que, nas rebarbas, tentam tirar alguma vantagem de tal tragédia.
Será que temos entre as nossas autoridades só a escória da raça humana?
Porém, diante da tragédia, vejo com a alegria que a maioria da sociedade brasileira tem mais lucidez que os seus governantes.
Uma pesquisa da Folha de São Paulo, divulgada neste domingo, revela que 59% (cinquenta e nove por cento) são contra uma renúncia do presidente contra 37% (trinta e sete por cento) que são favoráveis à renúncia, conforme defenderam, em carta alguns partidos de oposição, e, em outros veículos de comunicação, diversas lideranças políticas, principalmente, alguns que tentam tirar vantagens.
Não é que a sociedade brasileira, em percentual tão elevado apoie, o presidente ou mesmo apoie o seu desempenho diante da crise provocada pela pandemia. Nada disso, recentemente, outra pesquisa disse que apenas 35% (trinta e cinco por cento) aprovava o seu desempenho contra 75% (setenta e cinco por cento) que aprovava o desempenho do Ministério da Saúde do seu governo.
O que a sociedade brasileira já percebeu – e que a oposição e seus líderes teimam em bater cabeça –, é que este não é um momento para se aumentar as divisões internas do país.
A disputa não é entre governistas e oposicionistas, é contra uma pandemia, é contra um vírus que ameaça dizimar – e já vem fazendo isso –, um número significativo de vidas humanas.
Não é a primeira vez – e, infelizmente não será a última –, que enfrentamos uma pandemia. Desta vez, diferente, das vezes anteriores, estamos bem mais preparados.
Foi uma questão de dias entre o aparecimento da “doença” e o sequenciamento genético do vírus e o início de diversos métodos de tratamento.
Embora insipientes já existem diversos estudos apontando um rumo.
A nossa luta, a luta da sociedade, é para termos o menor número de vítimas possível; é para não sobrecarregarmos o sistema de saúde, inviabilizando o atendimento e provocando a contaminação, sobretudo, dos valorosos brasileiros que estão na linha de frente desta guerra.
Enquanto fazemos a nossa parte, o enfrentamento da pandemia exige, método, disciplina e comando.
Aliás, SUS significa justamente isso: Sistema Único de Saúde.
Não iremos muito longe e de nada terá valido os esforços da sociedade, se as “autoridades” insistirem e puxar cada um para um lado ou fazer da sua maneira.
O momento é de ouvir a ciência. É ela nossa melhor aliada.
Não imaginem que alguém vai lá e pegar o vírus na unha. Não é assim que funciona.
Espero que depois de derrotarmos o vírus a sociedade tome coragem para extirpar outra doença que assola o país – de forma tão ou mais danosa que o próprio vírus –, essa corja de políticos oportunistas e inescrupulosos que, sequer, sentem constrangimento em explorar as tragédias que ceifam vidas humanas.
Abdon Marinho é advogado.