A JUSTIÇA DOS POBRES E A JUSTIÇA DOS RICOS.
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- Criado: Terça, 22 Outubro 2019 12:06
- Escrito por Abdon Marinho
A JUSTIÇA DOS POBRES E A JUSTIÇA DOS RICOS.
Por Abdon Marinho.
EM MEADOS de 2018, durante uma de minhas viagens pelo interior, fui procurado por um amigo. Queria que intercedesse por uma família que fora presa preventivamente, em um conflito agrário, acusada de ameaçar os invasores da terra. Alguns habeas corpus já tinham sido aviados, porém, ainda, sem êxito.
Apesar de não ser nossa área de atuação e pouca familiaridade termos com matéria penal, solicitei que um dos meus sócios fizesse um novo HC que iria falar com o desembargador. Assim foi feito e dias depois a família estava solta.
Passou pouco mais de dois meses (no máximo três) quando fui novamente procurado com o mesmo assunto. A Justiça, novamente, decretara a prisão de integrantes da família sob a acusação de que eles estariam ameaçando os supostos invasores das terras. Novamente tivemos que percorrer um longo caminho para conseguir soltar os cidadãos presos por ameaça. Vitória só obtida no Tribunal de Justiça através do voto da maioria dos membros da Câmara Criminal.
O crime de ameaça de que trata o artigo 147 do Código Penal, objeto da prisão daqueles cidadãos, estabelece pena de detenção de um a seis meses, ou multa.
Contado o tempo em passaram presos – nas duas vezes –, cumpriram mais que a pena máxima estabelecida no tipo penal.
Cumpre observar que cumpriram todo esse tempo de prisão sem serem ouvidos ou estado na presença de um juiz de direito, vez que não é obrigatória, nas comarcas do interior, a chamada audiência de custódia.
O Supremo Tribunal Federal — STF, decidirá brevemente sobre a constitucionalidade da prisão após o julgamento em segunda instância.
Ainda, segundo dizem, o STF, escudado na interpretação literal do inciso LVII do artigo 5º, da Constituição Federal, segundo o qual: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”, vetará a prisão a partir da condenação em segunda instância.
Segundo soube, os mais notórios criminosos do país já estão confirmando presença nas festas de final de ano e em outras previstas para o primeiro semestre do ano que vem.
Trata-se, por óbvio de uma importante decisão, fundada em tese jurídica relevante, afinal, se à Constituição diz que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em tese, ninguém poderia ser preso até que se esgotassem todos os recursos nas derradeiras instâncias da Justiça.
Doutrinariamente até concordo com tal entendimento, conforme já expressei em escritos anteriores. Entretanto, após muito refletir sobre o tema, me pus a pensar se este foi o norte traçado pelo constituinte originário.
Quando promulgada em outubro de 1988 o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, pontificou que aquela era uma Constituição cidadã, destinada, portanto, a diminuir as imensas desigualdades sociais existentes no nosso país.
Nos últimos trinta e um anos, por diversas vezes, sendo a última em 2016, o Supremo Tribunal Federal — STF, exceto pelo intervalo existente entre 2009 a 2016, entendeu que o cumprimento da pena a partir da confirmação do decreto condenatório na segunda instância não ofenderia à Constituição cidadã.
Na última decisão sobre o tema, em 2016, tanto o ministro Gilmar Mendes quanto o ministro Dias Toffoli assentaram que o Brasil, com aquele entendimento, se aproximava do mundo civilizado, uma vez que quase a totalidade das nações adotam o cumprimento da pena a partir da primeira ou da segunda instância.
Embora ressalvando as melhores das intenções que os ministros do STF têm, chega a ser perturbador que em tão pouco tempo mudem de opinião sobre um assunto tão sério e com monumental impacto sobre a vida dos cidadãos brasileiros, ainda mais quando se sabe que existem motivações subalternas numa mudança de entendimento na presente quadra: garantir a liberdade dos poderosos que foram apanhados no curso das investigações da Operação Lava Jato.
Olhando mais de perto, sabemos que essa é “missa encomendada” para soltar o ex-presidente Lula e diversos outros criminosos de “colarinho branco”, que ficarão fora do alcance da lei pelo resto de suas vidas. Como um recado para a patuleia de que o crime compensa e que quanto maior o crime maior a recompensa.
Nos últimos anos o STF, ao se ocupar de outros assuntos que não os pertinentes à sua pauta precípua: a guarda da Constituição, tem ficado a dever à sociedade. Agora, ao insistir (caso venha acontecer) em se tornar casa revisora de ações penais, ficará devendo muito mais. Não apenas porque não dará conta de julgar os recursos criminais que por lá aportarão como, também, por negar à sociedade uma punição célere e justa aos malfeitores.
Os exemplos estão aí, ainda à vista de todos. Basta lembrar o caso de Pimenta Neves que matou a namorada publicamente é só foi cumprir a pena após mais de uma década depois do crime, quando aos familiares da vítima – os que ainda estavam vivos –, sequer interessava mais. Ou caso do ex-senador Luiz Estevão que ficou, igualmente, mais de uma década impune após ser condenado por fraudes e estelionatos diversos em todas as instâncias da justiça e ficou postergando com dezenas de recursos.
E o que dizer do notório Paulo Maluf, que de tanto fazer malfeitos, até virou verbo, ainda na primeira metade dos anos oitenta, o verbo malufar, e que só foi conhecer as dependências internas de uma cela, e por curto período, no ano passado?
O Supremo, segundo a bolsa de apostas, trabalha para transformar a impunidade em regra para aqueles que puderem pagar bons advogados, independente de serem traficantes, latrocidas, corruptos, ladrões do dinheiro público.
Para estes as portas das cadeias serão giratórias.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a população carcerária do país já possui cerca de 730 mil presos. Destes, quase a metade é composta de presos provisórios, ou seja, de presos que não foram julgados ainda, cujo processos se arrastam por meses, por anos e, já tivemos casos de, por décadas.
Como é possível considerar ético ou moralmente justificável que se mantenha a prisão – até por anos –, de pessoas que nunca foram julgadas ou condenadas e que, até mesmo, nunca foram ouvidas por um juiz, e mandar soltar presos que já foram julgados e condenados, por uma, duas, três ou mesmo quatro instâncias – no caso dos diversos recursos existentes no âmbito do STF?
A solução será soltar todos os encarcerados cuja penas não tenham transitado e julgado? O que fazer com milhares de presos provisórios?
Se é injusto que se mande à cadeia alguém que já foi condenado por uma, duas, três, quatro instâncias, mas que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado, o que dizer da situação daqueles que nunca foram julgados uma única vez e estão encarcerados?
Alguma coisa está fora de ordem quando a justiça passa entender que uma prisão provisória garante mais a ordem pública que uma sentença condenatória.
Arrisco dizer que o STF poderá está conduzindo o país àquela situação em que o cidadão será compelido a fazer justiça com as próprias mãos.
Quem vai se conformar e ter que ficar olhando para um cidadão que ceifou a vida de um filho, um irmão ou um parente seu por anos a fio enquanto não “transita em julgado” todos recursos possíveis e imagináveis de serem tentados? Quem vai se conformar em ter que conviver – ou em saber –, que os fascínoras que invadiram sua casa, lhe roubaram, estupraram sua filha e/ou esposa ficarão soltos e rindo da sua cara? Como se manter pacífico diante de uma justiça que obrigatoriamente terá que tardar e quase sempre falhar?
Não foi bem entendido o alerta que fez o general Vilas-Boas sobre as consequências desastrosas que poderão advir de uma decisão política do STF, pautada nos próprios interesses e sem atentar para a gravidade os desdobramentos. O general não tem condições, sequer físicas, de ameaçar ninguém, como tentaram fazer crer e como alguns idiotas difundiram. Não vi o que disse, ou escreveu, como uma ameaça mas, sim, como um sentimento das ruas que já não toleram tanta impunidade e bandalha.
O que se desenha é uma justiça para os ricos e outra para os pobres?
Abdon Marinho é advogado.