EUA lançam um novo verbo: trumpar.
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- Criado: Sábado, 08 Fevereiro 2025 21:49
- Escrito por Abdon Marinho
EUA lançam um novo verbo: trumpar.
Por Abdon C. Marinho.
ERA UMA tarde modorrenta de domingo. Passava os canais da televisão a cabo em busca de algo para assistir quando, em um canal de clássicos, deparei-me com a série Roma, que assistira pela primeira vez lá pelo início dos anos dois mil. Gostei tanto que até comprei uma coleção de DVD’s da mesma.
No domingo alcançei a maratona da série quando já estava ali pelo Segundo Triunvirato (acordo político formalizado entre Marco Antônio, Otávio e Lépido para conduzir Roma após o assassinato de Caio Júlio César – e que durou de 43 a.C até 33 a.C).
Embora seja cativante falar sobre o Império Romano, inclusive da ascensão de César ao poder, o Primeiro Triunvirato (a aliança politica informal entre Pompeu, César e Crasso ocorrida entre 60 a.C e 53 a.C) e tantas outra situações, a parte que interessa ao presente texto, que vi retratado na série diz respeito apenas ao suposto encontro entre o tetrarca da Judéia, Herodes e Marco Antônio.
Herodes busca no Império Romano apoio para se consolidar como rei dos judeus e dirige-se a Marco Antônio nos seguintes termos:
— Soube que vocês, romanos, não pedem subornos mas que esperam que lhe sejam oferecidos, é verdade?
Marco Antônio apenas assente e Herodes oferece-lhe uma quantia significativa para contar com apoio de Roma, se certificando de que aquele “suborno” seria dividido entre os três triúnviros.
A série mostra Marco Antônio reclamando que poderia ter pedido mais e que tal suborno possa ter sido o início do fim do Triunvirato pois quis passar a perna nos demais.
O leitor aflito ou ansioso deve estar de perguntando o que fatos há mais de dois mil tem a ver com os Estados Unidos da América “terem” lançado no “mercado” o verbo trumpar.
Pois é, sucede que dias depois era como se aquela imagem do entretenimento que assistira anos atrás e que revira naquele final de tarde de domingo estivesse se repetindo, dessa vez exibida e transmitida por todos os canais de televisão do mundo.
O “imperador” de Israel foi aos Estados Unidos ter com aquele que se julga imperador do mundo em busca do apoio para continuar a promover o massacre do povo palestino.
No final daquele mesmo dia Trump anunciou a intenção de “ficar” com a Faixa de Gaza, o território palestino que era (é) o lar de mais de dois milhões de pessoas. São mais de dois milhões de pessoas que o imperador americano sugere que seja desalojados de suas terras e espalhados por países vizinhos para que ele possa “limpar” o território e construir sua “reviera” do Oriente Médio, de preferência com muitos cassinos e campos de golfe.
Esse terá sido o acordo entre os dois imperadores? Já no dia seguinte o presidente americano anunciou a retirada e retaliação ao Tribunal Penal Internacional deixando de reconhecer sua jurisdição por aquele tribunal ter incluído o israelense entre os criminosos de guerra do mundo pelo massacre do povo palestino em Gaza.
Tudo parece “encaixar” tão bem que se me dissessem que combinaram o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, que deu o pretexto para a destruição de Gaza e o morticínio de mais de 50 mil palestinos, a quase totalidade inocentes e setenta por cento desse número mulheres e crianças eu não teria dificuldades de acreditar.
Veio o ataque terrorista do Hamas, veio o massacre da população de Gaza na contraofensiva israelense; veio a destruição de toda infraestrutura do local, veio a fome, a sede, o frio e agora a ideia que aquela faixa de terra tem que ser administrada pelos americanos para tornar aquele lugar uma “reviera”, de preferência um mega negócio imobiliário para encher os bolsos dos plutocratas que assumiram o poder no império do norte.
E o que fazer com aqueles mais de dois milhões de pessoas que tentam sobreviver à todas essas provações da vida? Ora, esses homens, mulheres, crianças, idosos, etcetera serão espalhados como expatriados pelos países vizinhos.
Já nos dias seguintes o governo de Israel falava em um plano de saída “voluntária” daquelas pessoas privadas de tudo, inclusive da vida.
O verbo trumpar talvez tenha no assalto à Gaza sua mais eloquente manifestação. O cidadão que nomina o verbo fala sobre aqueles seres humanos, já privados de tudo, como estivesse lhes fazendo um bem. Espalhá-los pelo mundo, expatriados, sem referências, sem unidade, sem a sua existência como um povo.
Veja que não fala em acolhimento no seu país. Muito pelo contrário, por lá iniciou-se uma autêntica “caça às bruxas” contra os imigrantes que não ingressaram de forma regular no país, tratando a todos como marginais.
O verbo trumpar encontra-se presente nas mais estapafúrdias manifestações do homem mais poderoso do mundo.
—Vamos incorporar o Canadá transformá-lo no 51º estado americano;
—Precisamos da Groenlândia para a nossa segurança nacional;
—Vamos retomar o Canal do Panamá; e:
—Vamos assumir Gaza.
Tudo isso dito com a tranquilidade de quem pede um big Mac no McDonald. Pior, com dissimulação de quem tenta dizer que está “fazendo favor”. Alguém, em sã consciência, acha isso normal?
Ao lado disso, a imposição de tarifas desconexas; o desmonte de organizações multilaterais importantes para o equilíbrio geopolítico global; o negacionismo climático em um momento de emergência inquestionável e tantas outras loucuras.
O verbo trumpar é a comprovação de que o mundo não mais poderá contar com o apoio norte americano para manter o equilíbrio global, sua solidariedade em relação a diversos temas que eles conduziam e mantinham sua importância.
O mundo precisa (terá) encontrar outros pontos de equilíbrios diante da opção do novo governo americano de isolar-se dos demais países e viver para si e para os seus próprios interesses indiferentes ao fato de todos estamos na mesma nave.
Como já assistimos tantas outras vezes ao longo da história aquilo que tentam transparecer como prova de força é, na verdade, a derradeira prova de decadência de um império.
Como em todos os impérios decadentes os interesses públicos se misturam aos interesses privados dos donos do poder a ponto de não se conseguir distinguir onde termina um e começa o outro.
Não é o que estamos assistindo? Dizem que a Groenlândia é um interesse estratégico do país, mas não tem quem não saiba que a plutocracia quer mesmo o comando da ilha para explorar o território economicamente. No caso de Gaza nem procuraram disfarçar: querem expatriar os palestinos para fazerem a tal Reviera do Oriente Médio.
O verbo trumpar se amolda como uma luva à constatação de Herodes em relação aos cônsules romanos: o desejo ganhar algo (suborno) não é expressado mas a máquina se move pelos interesses pessoais dos imperadores.
Santa hipocrisia.
Abdon C. Marinho é advogado.