AbdonMarinho - A fome, a doença, a ganância e o crime.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Terça-​feira, 03 de Dezem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A fome, a doença, a ganân­cia e o crime.


A FOME, A DOENÇA, A GANÂN­CIA E O CRIME.

Por Abdon C. Marinho.

A FOME sem­pre me foi um tema per­tur­bador. Talvez ter sido cri­ado como “Deus cria batatas na beira do rio”, na inse­gu­rança da orfan­dade desde os cinco anos de idade, tenha influ­en­ci­ado neste sen­ti­mento.

Quando tra­bal­hei na Assem­bleia Leg­isla­tiva (1991÷1995) como chefe de gabi­nete do dep­utado estad­ual Juarez Medeiros, sem­pre me cha­gavam pedi­dos de toda ordem. Não sei se ainda é assim, mas no tempo em que a Casa do Povo fun­cionava na Rua do Egito e o acesso dos cidadãos era mais fácil, está­va­mos a dez met­ros de ser­mos sur­preen­di­dos com algum pedido. Uma indús­tria de ped­intes profis­sion­ais que viviam pas­sando de gabi­nete em gabi­nete ten­tando con­seguir alguma coisa.

Como chefe de gabi­nete, os pedi­dos chegavam para eu resolver, até já des­tiná­va­mos uma quan­tia todo mês com essa final­i­dade.

Certa vez, um cidadão que não con­hecia minha fama de pos­suir boa memória ten­tou aplicar-​me um golpe – e con­seguiu, ao menos em cinquenta por cento.

O indig­i­tado chegou no gabi­nete com uma con­versa “bonita”, porém, triste: pre­cisava ir a deter­mi­nado inte­rior porque sua mãe mor­rera naquele dia, que­ria o din­heiro da pas­sagem e ainda uma ajuda para o velório/​enterro.

Sen­si­bi­lizado diante de uma tragé­dia que con­hecia bem, não demorei a acudi-​lo, peguei o recurso do “fundo de reserva” e o ajudei.

Não se pas­saram seis meses – acred­ito que por ter­mos mudado de gabi­nete –, lá estava o mesmo cidadão diante de mim con­tanto a mesma história: — sabe, sen­hor, minha mãe mor­reu hoje, pre­ciso ir com urgên­cia para o velório, aju­dar no enterro, etc. Para ten­tar aumen­tar a empa­tia, ainda com­ple­tou: — sei que o dep­utado Juarez é uma pes­soa de bom coração, você é irmão dele, não é? Como gente feia é tudo pare­cida, na época cor­ria o boato que eu seria irmão do dep­utado.

Mal ter­mi­nou sua falação, o atal­hei: — meu amigo, não sei quan­tos pais você tem, se tem mais de um ou nen­hum, mas mãe só se tem uma e a sua, ajudei a “enterrá-​la” não tem seis meses.

O cidadão riu amarelo e saiu para ten­tar aplicar o golpe noutro gabi­nete ou para rua.

Já o mesmo tirocínio nunca tive quando o cidadão diz que pre­cisa de ajuda para com­prar comida, para si, ou para os fil­hos menores. Me “gan­ham” todas. Basta dizer: — oh, doutor saí de casa cedo a procura de tra­balho e não deixei nada para as cri­anças com­erem.

Muitas das vezes a con­versa tem “cara” de golpe, “cheiro” golpe e todos os demais pred­i­ca­dos de que se trata de um golpe, mas acabo “caindo”. Sem­pre penso: “e se for ver­dade, se de fato tem uma ou mais cri­ança pas­sando fome?”.

Agora com essa pro­fusão de redes soci­ais, méto­dos de paga­men­tos, os pedidos/​golpes vem pelo celu­lar e as trans­fer­ên­cias via pix.

Parto do princí­pio de que é prefer­ível ser o alvo dos pedi­dos de ajuda – golpes ou não –, do que pre­cisar da ajuda de out­rem.

Pois bem, feitas tais con­sid­er­ações, devo dizer – ou con­fes­sar –, que as ima­gens dos indí­ge­nas ianomâmis esquáli­dos, lit­eral­mente “mor­tos de fome”, já pas­sa­dos tan­tos dias desde que divul­gadas pela primeira vez, não me saem da cabeça.

São cen­te­nas – talvez mil­hares –, de indí­ge­nas mor­tos pela fome ou doenças cau­sadas por ela ou pela con­t­a­m­i­nação dos seus recur­sos nat­u­rais ren­ováveis. Crimes cometi­dos con­tra um povo que não poderão ficar impunes.

Nos últi­mos anos órgãos públi­cos, do próprio gov­erno, aler­taram aos man­datários eleitos para cuidar do povo, para o avanço dos garim­pos ile­gais em áreas indí­ge­nas.

Tais aler­tas apon­tavam para o acréscimo de mil­hares e mil­hares de hectares de garim­pos ile­gais. Out­ros aler­tas, para a con­t­a­m­i­nação dos rios pelo mer­cúrio e até mesmo para o fato dos indí­ge­nas já estarem mor­rendo em decor­rên­cia disso.

Não vejo como a Polí­cia Fed­eral terá difi­cul­dades em iden­ti­ficar os respon­sáveis, os lenientes e os omis­sos em tais situ­ações.

O INPE o IBAMA e out­ros órgãos, desde sem­pre aler­taram para o aumento do des­mata­mento, para o surg­i­mento de inúmeros garim­pos ile­gais e depois, out­ros órgãos, foram aler­tando para as con­se­quên­cias decor­rentes.

O que fiz­eram os “supos­tos” respon­sáveis? Demi­ti­ram os diri­gentes dos órgãos, proibi­ram a emis­são de mul­tas, proibi­ram o com­bate as ativi­dades ile­gais, “sucatearam” os órgãos públi­cos e fiz­eram pouco caso das con­se­quên­cias.

Foi assim desde o iní­cio do gov­erno que findou.

A cada denún­cia de crime ambi­en­tal cometido, uma enx­ur­rada de fake news para desqual­i­ficar os denun­ciantes – ainda que fos­sem infor­mações ofi­ci­ais de órgãos públi­cos, do próprio governo.

Agora mesmo, diante das ima­gens chocantes que mais se assemel­ham às fotografias em preto-​e-​branco tiradas nos abom­ináveis Cam­pos de Con­cen­tração da Segunda Guerra Mundial, ten­tam fazer pouco caso, igno­rar, dizer que são “índios impor­ta­dos da Venezuela”, poli­ti­zar e fin­gir que nada têm com o caso.

Agora mesmo, o site UOL traz a infor­mação de que doc­u­men­tos ofi­ci­ais já cobravam providên­cias para o Min­istério da Justiça e da Cidada­nia desde mea­dos de 2021 em relação a situ­ação nutri­cional dos povos indí­ge­nas. E não foi ape­nas uma única vez, mas diver­sas, e o que fiz­eram as autori­dades? Igno­raram.

E a denún­cia do site é mais grave: segundo ele (site), emb­ora sabendo o que se pas­sava o gov­erno “cor­tou” os ali­men­tos que dev­e­riam ser envi­a­dos aos povos ianomâmis.

Os respon­sáveis, as cadeias de comando dos crimes cometi­dos é de fácil com­preen­são e elu­ci­dação.

O que pre­cisa ser com­pro­vado de forma incon­tro­versa é se os atos crim­i­nosos cometi­dos con­tra os povos indí­ge­nas tiveram o propósito delib­er­ado de exterminá-​los, ou seja, se a ideia era come­ter o genocí­dio. Caso afir­ma­tivo, quem ide­al­i­zou, con­cor­reu, teve ati­tude comis­si­vas ou omis­si­vas em relação ao que estava acon­te­cendo.

Con­forme já ampla­mente divul­gado nos meios de comu­ni­cação, inúmeros “reli­giosos” com acesso aos cic­los do poder, “vagaram” por garim­pos ile­gais ofer­e­cendo van­ta­gens e cobrando qui­los de ouro em troca, fazendo o mesmo em relação a out­ros trâmites de gov­er­na­men­tais; é fato que nos últi­mos anos nen­huma ativi­dade ile­gal seja de des­mata­mento – em ter­ras indí­ge­nas ou não –, seja garim­pagem ile­gal, sofreu qual­quer repressão efe­tiva, tanto assim que cresceu mil­hares e mil­hares de vezes em ter­mos per­centu­ais; é fato, segundo o próprio gov­erno, que mais de um bil­hão de reais foram repas­sa­dos a enti­dades reli­giosas para ali­men­tar e cuidar da saúde dos índios e que medica­men­tos e ali­men­tos foram parar nos garim­pos ile­gais.

Não cabe qual­quer dúvida de que crimes (inúmeros) foram cometi­dos em decor­rên­cia da ganân­cia e que tiveram como con­se­quên­cia, as doenças, a fome e à morte de um povo,

Aos inves­ti­gadores caberá delim­i­tar a respon­s­abil­i­dade de cada um, o dolo de forma comis­si­vas e omis­si­vas dos vários agentes, públi­cos ou não.

O seg­redo é saber inves­ti­gar.

Aos que preferi­ram os “bez­er­ros de ouro” ao estrito cumpri­mento da palavra de Deus, a hora de prestar con­tas talvez chegue mais rápido do que pen­saram.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.