AbdonMarinho - Língua não é osso …
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Quinta-​feira, 21 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Lín­gua não é osso …


LÍNGUA NÃO É OSSO

Abdon C. Marinho.

IBN AL-​MUKAFA (que sig­nifica Ibn filho de Mukafa, que, por sua vez rece­beu o nome de Mukafa, por ter sido tor­tu­rado pelo gov­er­nador a quem servia como cole­tor de impos­tos que sus­peitara de sua hon­esti­dade), nascido no ano de 724, na Pér­sia, era homem de rara cul­tura, escreveu ou cole­cio­nou histórias, segundo ele, vin­das de cul­turas bem mais anti­gas e dis­tantes no livro inti­t­u­lado Calila e Dimna.

Em uma frase mar­cante, ainda na apre­sen­tação do livro diz: “o machado corta a árvore, e esta volta a nascer e crescer; a espada corta a carne e que­bra o osso, e a ferida sara e o osso solda – mas feri­das que a lín­gua abre nunca se cica­trizam”.

Gan­hei o livro de pre­sente lá no ini­cio dos anos noventa e desde então nunca mais dele me afastei, exceto pelos perío­dos em que esteve emprestado ou que alguém o pediu emprestado e não devolveu forçando-​me a com­prar outro.

Refle­tia outro dia sobre o mile­nar ensi­na­mento tran­scrito acima e pen­sava na situ­ação do pres­i­dente do Brasil e can­didato à reeleição.

Pois bem, a lem­brança e cor­re­lação que fiz entre o tal político e os ensi­na­men­tos do livro de Ibn Al-​Mukafa foi que, se não tivesse quais­quer out­ras razões para não sufragá-​lo nas urnas, uma razão, à vista de todos, um imped­i­mento moral e ético me impediria de fazê-​lo: o seu com­por­ta­mento durante a pan­demia, a falta de con­sid­er­ação, respeito, empa­tia, sol­i­dariedade àque­les que per­diam seus pais, avós, tios, fil­hos, ami­gos.

Como ele próprio con­fes­sou, em data recente, suas “alo­pradas”.

Um pres­i­dente da República não pode, não deve e não tem o dire­ito de “alo­prar” durante o momento mais grave vivido por seus con­ci­dadãos.

Mesmo quando não se pode fazer nada, sobra o dever de ser solidário.

Foi o que não tive­mos.

Já se foram quase 700 mil vidas per­di­das sem que hou­vesse um gesto sin­cero de sol­i­dariedade de sua excelên­cia para com às víti­mas e/​ou seus famil­iares e ami­gos.

Perdi diver­sas pes­soas que me foram caras em vida e de quem a lem­brança me enche de saudade.

Entre tan­tos, uma das primeiras pes­soas que perdi foi a pro­fes­sora Nancy, de Mara­caçumé. Con­heci Nancy em uma das cam­pan­has de Cafeteira – já não lem­bro se na de 1994 ou na 1998 ou no inter­valo de ambas –, ela era vereadora na época, aju­dava dezenas de pes­soas e tinha uma respon­s­abil­i­dade espe­cial com a for­mação de seus famil­iares, irmãs, sobrin­hos, etc.

Durante anos, sem­pre que descia para região do alto Turi encostava em sua casa.

Nos últi­mos anos os afaz­eres de ambos nos afas­tou, mas sem­pre que pas­sava por Mara­caçumé e par­ava para o tradi­cional cafez­inho na D. Cláu­dia, per­gun­tava por ela e deix­ava recado.

Em fevereiro de 2020, na última viagem antes da pan­demia, con­seguimos nos reen­con­trar e tro­car umas ideias.

Aí veio a pan­demia, cerca de um mês – ou pouco mais que isso –, me alcança uma lig­ação do tele­fone de Nancy. Atendi: — oi, Nancy. Do outro lado linha respon­dem: — oi, doutor, não é Nancy, ela foi trans­ferida com urgên­cia para São Luís.

Acho que era uma sexta-​feira. No domingo, uma outra lig­ação: — doutor, Nancy não se encon­tra mais entre nós.

Uma morte que além da perda, trouxe con­se­quên­cias para diver­sas out­ras pes­soas.

Se não me falha a memória, a morte de Nancy deu-​se entre as seguintes colo­cações de sua excelên­cia: “brasileiro pula em esgoto e não acon­tece nada” , 26 de março e “eu não sou cov­eiro”, de 20 de abril.

Depois de Nancy foi a vez de outro grande amigo, Adal­berto Nasci­mento, ex-​prefeito de Belágua, com que tive a honra e ale­gria de tra­bal­har durante quase dois mandatos inteiros.

Adal­berto era uma pes­soa extra­ordinária com quem dava gosto con­ver­sar. Sem­pre que tinha opor­tu­nidade, já depois do seu mandato, o con­vi­dava para tomar um cafez­inho no escritório.

No iní­cio de junho um dos seus fil­hos me avi­sou que ele fora inter­nado, acho que menos de uma sem­ana depois recebi outra lig­ação, essa avisando que ele não resi­s­tira.

O iso­la­mento não per­mi­tiu que sequer pudésse­mos nos des­pedir dele. O cortejo com caixão fechado cir­cu­lou pelas ruas da cidade.

O amigo Adal­berto perdeu a vida entre duas frases de sua excelên­cia: “a gente lamenta todos os mor­tos, mas é o des­tino de todo mundo”, de 2 de junho; e, “é como uma chuva, vai atin­gir você”, de 7 de julho, quando o número de víti­mas já atin­gia 66.741 mortes.

Adal­berto tinha ape­nas 60 anos quando foi “atingido pela chuva”, deixou oito fil­hos entrando na vida adulta.

O fim do ano trouxe-​me mais um desalento.

Um amigo de infân­cia, com quem brin­cava, com quem ia para escola quase todos dias, Gec­i­mon Pereira, pegou COVID-​19 e não resis­tiu. Tinha prati­ca­mente a minha idade, uma vida inteira pela frente, fil­hos e netos com quem par­til­haria muitas coisas boas.

Perdi essa amizade de uma vida inteira entre duas frases de sua excelên­cia: “país de mar­i­cas”, dita em 10 de novem­bro; e “se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada com isso”, dita em 17 de dezem­bro, aquela altura o país já con­tava com 184.827 mortes pela pan­demia.

Em junho de 2021 per­dia outro grande amigo, José Raimundo Fer­reira Verde, o nosso Verde, cuja a história se con­fun­dia com a história recente da Assem­bleia Leg­isla­tiva do Maran­hão. O con­hecia desde que fui tra­bal­har naquela Casa, no iní­cio de 1991. Desde então, até o seu perec­i­mento, man­tive­mos uma firme amizade.

Verde teve um ataque cardíaco ful­mi­nante em decor­rên­cia da COVID-​19.

No mês de sua morte, sua excelên­cia nos brindou com as seguintes frases de “con­forto”: nunca vi ninguém mor­rer por tomar hidrox­i­cloro­quina”, o medica­mento que que­ria porque que­ria fazer fun­cionar con­tra o vírus; e “quem pegou o vírus está imu­nizado”.

Por este período – ou pouco antes –, quase perdemos um dos meus irmãos, o que vem logo antes de mim, Fran­cisco.

Não fosse a pro­teção de São Fran­cisco e o severo mon­i­tora­mento feito por um sobrinho e um irmão, talvez não estivesse aqui para con­tar a história.

Quando vimos as taxas de oxigênio baixar e o pul­mão se com­pro­m­e­ter, fui avisado: — tio, temos que levar o tio urgente para São Luís. Assim foi feito.

No tra­jeto de Gonçalves Dias pra cá, feito em alta veloci­dade, e, ainda assim con­sumiu umas três ou qua­tro “balas” de oxigênio até ser inter­nado em um hos­pi­tal da cap­i­tal. Durante todo o tempo meu sobrinho e meu irmão, que são médi­cos, rece­beram meu pedido para que não se afas­tassem dele por motivo algum.

Enquanto via sua excelên­cia fazer uma imi­tação grotesca de alguém mor­rendo pela falta de oxigênio, lembrei-​me do sofri­mento do meu irmão e a angús­tia que acome­teu a todos nós, seus irmãos, sobrin­hos e ami­gos, sem saber se ele sobre­vive­ria ou não.

Nancy, Adal­berto, Gec­i­mon, Verde e tan­tos out­ros que pere­ce­ram em uma conta que já chega a quase 700 mil vidas per­di­das para a pan­demia, não são ape­nas números.

Durante esse tempo todo sua excelên­cia não se dig­nou a expres­sar um único sen­ti­mento de empa­tia pelas víti­mas ou pela dor dos seus famil­iares e ami­gos.

Nunca foi capaz de encer­rar um pas­seio de fim de sem­ana para hipote­car sol­i­dariedade.

Fez, ao con­trário, foi debochar, cam­panha con­tra a vaci­nação – com grave reflexo, inclu­sive, nas cam­pan­has de vaci­nação reg­u­lar –, “torcer con­tra o sucesso” de deter­mi­nado imu­nizante, por sen­ti­mento poli­tiqueiro e mesquinho.

Ainda que, difer­ente do que apon­tam diver­sos estu­dos cien­tí­fi­cos, seu com­por­ta­mento não tenha sido cau­sador de nen­huma morte, ape­nas o deboche, o menosprezo, a falta de sol­i­dariedade, já seriam sufi­cientes para votar con­tra sua pre­ten­são de con­tin­uar dirigindo o país.

Com todo respeito que tenho pelos que pen­sam difer­ente, o sol­i­dariedade aos que pere­ce­ram, reforça, o imper­a­tivo ético para que faça isso.

Agora mesmo vejo sua excelên­cia, com olhar com­pungido, em com­er­ci­ais de cam­panha “pedir perdão” por seu com­por­ta­mento, cuja definição mais branda seria abjeto.

A minha fé impo­ria a obri­gação de per­doar, entre­tanto, para que haja o perdão é necessário que o arrependi­mento seja ver­dadeiro, e não é isso que vemos.

Os que con­hecem a Palavra mel­hor do que eu, sabem que o próprio Jesus Cristo disse: “vás e não peques mais”.

Se, enquanto pede perdão, o pecador con­tinua a incor­rer nos mes­mos peca­dos, não merece o perdão.

Foi o que vimos no tris­te­mente famoso episó­dio do “pin­tou um clima”.

A frase de sua excelên­cia foi: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menin­in­has, três, qua­tro, boni­tas; de 14, 15 anos, arru­mad­in­has num sábado numa comu­nidade. E vi que eram meio pare­ci­das. Pin­tou um clima, voltei. “Posso entrar na tua casa?» Entrei. Tinha umas 15, 20 meni­nas, num sábado de manhã, se arru­mando —todas venezue­lanas. E eu per­gunto: Meni­nas bonit­in­has, 14, 15 anos se arru­mando num sábado para quê? Gan­har a vida. Você quer isso para a tua filha, que está nos ouvindo aqui agora. E como chegou neste ponto? Escol­has erradas».

Não bas­tasse a gravi­dade incon­ce­bível de um quase sep­tu­a­genário dizer que “pin­tou um clima” referindo-​se a uma ado­les­cente de 14 ou 15 anos, o episó­dio que ten­tou explo­rar é uma men­tira grotesca.

As garo­tas que viu arru­madas, e por quem “pin­tou um clima”, não estavam se pros­ti­tuindo, como disse; a casa onde entrou, não era uma casa de pros­ti­tu­ição e, sim, uma ação social de acol­hi­mento.

O desejo de fazer explo­ração política ao invés de agir como um chefe de nação respon­sável ou mesmo um pai de família, o fez descam­bar, mais uma vez, para a agressão aque­les a quem dev­e­ria e teria o dever de acol­her.

Tudo que vive­mos nos últi­mos anos e mesmo episó­dios recentes, não podem ser nor­mal­iza­dos.

Não, não tem perdão.

Um ditado do meu inte­rior diz: “lín­gua não é osso mas que­bra caroço”.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.