A fome como arma política.
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- Criado: Domingo, 17 Julho 2022 12:59
- Escrito por Abdon Marinho
A FOME COMO ARMA POLÍTICA.
Por Abdon C. Marinho.
ESTAMOS a menos de noventa dias do pleito eleitoral, este ano previsto para ocorrer em 2 de outubro, conforme a legislação eleitoral.
Este é o período que os especialistas chamam de “microprocesso” eleitoral, a reta final, daqui a pouco serão as convenções partidárias para escolha dos candidatos, o início da campanha propriamente dita, a utilização do rádio e televisão para a propaganda eleitoral gratuita e o voto, quando os eleitores poderão (?) livremente escolher aqueles que irão conduzir os destinos do país, dos estados e exercer a representação do povo nas casas dos parlamentos.
Pois bem, foi dentro deste período delicado do pleito eleitoral que o governo e seus aliados no Congresso Nacional contando com a cumplicidade forçada ou não da oposição resolveu aumentar o valor do Auxílio Brasil — o ex-Bolsa Família –, para R$ 600 reais, criar uma “bolsa-caminhoneiro” de 1mil reais e uma bolsa-taxista de R$ 200 reais e dobrar o valor do vale-gás para R$ 120 reais a cada dois meses.
No Senado da República, onde o modelo de representação deveria servir para salvaguardar os interesses dos estados e da própria União às intempéries dos interesses eleitorais, vez que os mandatos são renovados de forma alternada de um e dois terços (nesta eleição será de um terço) apenas uma voz se ergueu e votou contra. Na Câmara dos Deputados até que se teve um número superior a esse, ainda assim, infinitamente minoritário ao atropelo das normas eleitorais e morais que deveriam nortear as condutas dos homens públicos de qualquer lugar do mundo.
O que tivemos, na votação desta PEC (proposta de emenda constitucional), também apelidada de PEC kamikaze; PEC das bondades ou Programa Eleitoral do Centrão — PEC, foi a classe política nacional — com raras e honradas exceções –, burlando a legislação eleitoral e votando, despudoradamente, na defesa dos próprios interesses.
Em outras palavras, fraudando a eleição às portas do pleito.
A lei eleitoral, em vigência de 1997, ou seja, há um quarto de século, é bastante clara: “§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”. Lei nº. 9.504÷1997, artigo 73.
Ainda que se alegue que o dispositivo acima foi inserido pela Lei nº. 11.300÷2006, já se vão dezesseis anos em que os governantes estão legalmente proibidos de, no ano eleitoral, fazerem o que, agora faltando menos de noventa dias para as eleições, os “donos do poder” no Brasil fizeram.
Pior do que isso. Fizeram com a “cumplicidade” de todos, políticos da situação, da oposição, da imprensa, das entidades da sociedade civil, etc.
Ninguém – ou quase ninguém –, levantou-se para dizer: — ei, isso não pode; isso é fraude eleitoral; não se pode mudar as regras do jogo com a bola rolando ainda mais para explorar uma necessidade tão premente da população quanto a fome.
Não tenho notícias nem mesmo de que o Ministério Público Federal – ou o que sobrou dele –, tenha “se levantado” para dizer que a PEC é flagrantemente inconstitucional e que os seus partícipes deveriam ser considerados inelegíveis.
Nada. Ninguém disse nada. O Brasil de forma acelerada vai se tornando o país do vale-tudo.
— Ah, Abdon, tu és contra aumentar os auxílios sociais com o povo passando fome? Conceder bolsa a caminhoneiros e taxistas, com os preços dos combustíveis nas alturas? Aumentar o vale-gás para impedir que o povo volte a cozinhar na lenha?
Não, de forma alguma. O que sou contra é que os governantes (executivos e legisladores) que foram incompetentes na condução do país e nos levaram a isso, agora queiram tirar benefícios da própria incompetência explorando a fome e a miséria do povo.
E vejam que não fazem questão de disfarçar o caráter eleitoreiro da PEC e do “pacote de bondades”: os acréscimos e novos benefícios concedidos encerram em 31 de dezembro de 2022.
Ora, quer dizer que até dezembro os brasileiros vão “resolver” suas vidas e não vão mais precisar do auxílio Brasil “turbinado”, do vale-gás; do vale-caminhoneiro; do vale-táxi e dos demais penduricalhos?
Os dados sobre a fome no Brasil são anteriores ao ano eleitoral.
Desde o ano passado – e até antes –, temos assistido as pessoas fazerem filas para receberem ou mesmo comprarem ossos ou carcaças de frangos na intenção de suprirem a necessidade de proteínas; há muito tempo as instituições de pesquisas apontam para o empobrecimento da população, para o fato de conseguirem pagar suas contas básicas; para o aumento do número de pessoas vivendo nas ruas por não poderem pagar o aluguel ou vivendo da caridade alheia; há muito tempo que os podem ir ao supermercado comprar o que comer voltam com o carrinho cada vez mais vazio.
Apesar de todo instrumental que possuem os governantes só se deram conta da “emergência” e da “calamidade” que levaram o país agora, faltando menos de noventa dias para as eleições.
Mas, pasmem, já sabem que a “emergência” e a “calamidade” cessarão no final de dezembro, certamente Papai Noël ou o Ano Novo, trarão a solução para os problemas que criaram ou que não foram capazes de resolver.
Vejam que os políticos não se dão conta da enorme contradição do seu discurso pois à medida que se acham merecedores do voto da população pelo “belíssimo” trabalho que fizeram à frente da nação, votam uma PEC reconhecendo que estamos em emergência e em estado de calamidade com o povo morrendo de fome nas ruas e sem poderem aguardar mais três meses.
Os governantes estão no poder há quatro, oito, doze, vinte ou trinta anos – muitos deles até mais do que isso –, passaram a achar que se não aprovassem uma PEC faltando menos de noventa dias para o pleito o povo brasileiro, pelo menos uma grande parcela da população iria morrer de fome.
Daí a urgência. O povo não teria como esperar pelo pacote de bondades para depois das eleições sob o risco de perecer. Meu Deus! Como são gentis e preocupados.
Há anos no poder não foram capazes de atacar as causas dos problemas que nos afligem, mas, agora, se vestem de “valente” para, com o nosso dinheiro, atacar os efeitos – e, em seus próprios benefícios.
Sei perfeitamente da grave situação que passa o país, sei das necessidades do povo brasileiro e nem precisaria que instituições de pesquisas me dissessem, todos dias, todas as semanas, sou abordado co pedidos de cidadãos para comprar comida, por um emprego, etc., como disse, desde muito tempo, os governantes só descobriram agora.
Vejo generais, coronéis, juristas, políticos, ministros, “todos” se dizendo preocupados com risco de fraude nas urnas eletrônicas – quando, desde 1996, não se tem notícia ou registro de nenhuma inconformidade e para qual existem diversos mecanismos de segurança –, mas que não se dão conta que a verdadeira fraude é aquela que acontece à vista de todos com a exploração da vontade do povo a partir da necessidade inadiável que tem o cidadão de alimentar-se a si e a sua família.
Estes ilustres falastrões emudecem diante da fraude eleitoral mais manifesta e cruel e que não depende de sofisticados programas de computação para serem comprovadas: basta olhar em volta
A verdadeira fraude eleitoral se manifesta com a desigualdade entre os competidores e é isso que estamos assistindo no Brasil.
Vemos aqueles que têm mandato disporem de milhões e milhões de reais do orçamento da União e dos estados para tocarem suas campanhas – parte deles do chamado “orçamento secreto” –, e disporem de bilhões de reais dos recursos dos fundos partidário e eleitoral em detrimento dos cidadãos comuns que também têm o direito e a garantia constitucional de participarem dos negócios do país.
A exploração da fome da fome, da miséria e a desigualdade financeira devido a utilização de recursos públicos por uns em detrimento de outros, são as principais e mais graves formas de fraudes eleitorais.
Os cidadãos de bem não podemos e não temos o direito de se calarmos diante delas.
Um derradeiro acréscimo: não há que se falar em democracia quando o processo eleitoral não assegura entre os que pleiteiam mandatos eletivos qualquer isonomia.
Abdon C. Marinho é advogado.