Os reis, os ladroes e a pistola de Cristo.
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- Criado: Domingo, 19 Junho 2022 14:05
- Escrito por Abdon Marinho
OS REIS, OS LADRÕES E A PISTOLA DE CRISTO.
Por Abdon Marinho.
EM 1655, há 367 anos, na Misericórdia de Lisboa, o padre Antônio Vieira fazia a pregação do seu “Sermão do Bom Ladrão”. E já iniciava por dizer «Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste”.
Ainda no primeiro parágrafo sentencia: «Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis”.
Antes de tal sentença Vieira coloca o exemplo do Rei dos Reis, Nosso Senhor Jesus Cristo, que antes do suspiro derradeiro na cruz prometeu a Dimas, o ladrão crucificado ao seu lado, que ainda naquele dia estaria com Ele no paraíso.
Vieira foi um dos personagens mais influentes de sua época, um gênio pelos dons da filosofia, da escrita e da oratória, tendo se destacado mais ainda como missionário da Companhia de Jesus em terras brasileiras. Como poucos conhecia a Bíblia e toda a obra clássica.
Certamente Vieira ficaria escandalizado com um governante que nega o cristianismo na sua essência mais sagrada: a paz e a boa vontade entre os homens para solução dos conflitos.
A ideia de Jesus Cristo com pistolas professada por alguém que se diz honrado cristão só não é tão grave quanto o silêncio e aquiescência de pastores evangélicos que vivem oficialmente de pregar sua palavra diante de tamanha blasfêmia.
Com uma lorota o “bom cristão” negou, diante dos pregadores, mais de dois mil anos de cristianismo.
No fundo o governante repetiu, segundo muitos, o entendimento de Judas Iscariotes que ao trair Cristo imaginou que este poderia invocar exércitos celestiais para por fim a opressão judaico-romana daqueles dias.
Mas, Cristo, entretanto, era só amor e bondade e mesmo no momento de maior aflição o que fez foi entregar-se ao Pai, conforme ensina o Evangelho de Mateus 26 – 39: “Indo um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto em terra e orou: ‘Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres’”.
Vejam que Jesus mesmo no momento de maior desespero o que fez foi pedir ao Pai, se possível, o afastamento do cálice da amargura, do sofrimento, mas, mesmo assim que fosse feito conforme sua vontade, a vontade do Pai.
E naquela mesma noite de angústia e sofrimento, por ocasião da sua prisão, mais uma vez, Jesus Cristo condena a violência.
Falo do episódio da restauração da orelha de Malco relatada nos quatro Evangelhos (João 18:10 – 11, Mateus 26:51; Marcos 14:47 e Lucas 22:49 – 51).
No momento da prisão um dos que acompanhavam Jesus – existe divergências/omissão se foi o discípulo Pedro –, lançou mão da espada e decepou a orelha do servo do sacerdote Caifás.
Seguimos com Mateus 26 – 51, 52: “Então Jesus disse-lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão. Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?”.
Como vemos, o repúdio à violência é intrínseco ao cristianismo a partir dos ensinamentos e exemplo do próprio Jesus.
Quando se fala na “paz de Cristo” não estamos falando palavras desprovidas de sentido.
A ideia de um Cristo se valendo do uso de pistolas – quem sabe uma submetralhadora sob o manto sagrado –, é a negação do cristianismo, é uma proposição infamante e vil, pois negada de pronto pelo próprio Jesus, conforme narrado em quatro evangelhos.
A opção dos cristãos, seguindo o exemplo de Cristo é pela não violência.
Jesus Cristo não deixou de comprar pistolas porque elas “não existiam naquela época”, mas, sim, por rejeitar a violência, ainda que no prejuízo da sua vida terrena. Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?, disse Jesus.
Vivemos dias tão estranhos no Brasil que é bem possível que determinados cristãos, mesmo pastores, reneguem os ensinamentos bíblicos. Talvez, pelo anseio da adulação, imaginem que a Bíblia nada vale e o que tem valia mesmo sejam as asnices proferidas pelo ídolo.
Aliás, tenho um amigo que ao vê determinados pregadores imersos em pecados, costuma dizer que eles, sim, são os verdadeiros ateus, pois mesmo conhecendo a Palavra optam pelo pecado.
Deixemos, entretanto, tais digressões de mão e voltemos aos ensinamentos de Vieira, que é, efetivamente, o objeto do presente texto.
Quando o padre diz que «Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis”, ele está, na verdade, atribuindo ao governante as responsabilidades pelos “negócios” do Estado.
Se um governo não garante a segurança dos seus cidadãos e alguém perece em virtude disso, o governante pode até alegar que não teve culpa. Não foi ele, pessoalmente, que mandou matar o cidadão, mas ele tem responsabilidade pelo fato ter acontecido por diversos motivos.
A figura do governante “irresponsável” é incompatível o poder que lhe foi concedido pelo povo para a solução dos seus problemas.
Se transportamos tais conceitos para a realidade atual do país, não teremos como desvincular a responsabilidade dos governantes dos dissabores dos cidadãos.
Nos últimos anos o governo federal, de forma deliberada ou não, “criou as condições” para o aumento da violência no norte do país, notadamente na região amazônica.
Estas condições encontram-se presentes na diminuição da fiscalização com a redução do número de fiscais; com a leniência ou pouco caso com que permite a exploração de garimpos ilegais em terras indígenas, do desmatamento da floresta e venda ilegal da madeira para outros países e a própria redução da fiscalização nas fronteiras, o que coloca em risco a segurança nacional.
O governo omisso ou em muitos casos colocando-se ao lado dos ”grileiros”, exploradores de madeira, minérios e de outras riquezas nacionais atua como fermento que deságua na violência em seu estado bruto.
Quando o cidadão vai abastecer o carro e descobre que terá que vender o veículo para conseguir colocar o diesel, do mesmo modo, a responsabilidade é do governo.
Assisto, só para citar o exemplo mais recente, o governo deliberadamente culpar a Petrobras pelo aumento dos preços dos combustíveis, inclusive causando prejuízos bilionários a empresa – foram 30 bilhões na sexta-feira e já anunciam mais trinta bilhões de prejuízos para a empresa na semana seguinte com a instalação de uma CPI –, para fugir das próprias responsabilidades.
Conforme alertamos desde o ano passado – e até antes –, incontinências verbais e incompetência, desvalorizaram a moeda brasileira bem acima da média das outras moedas. Este é um dos motivos para o nosso combustível ter subido tanto.
Outro motivo é o fato do Brasil, com uma guerra anunciada, e sendo majoritário no comando da Petrobras, não ter adotado qualquer medida aproveitando os lucros da empresa para ter um estoque regulador diante da crise anunciada ou mesmo ter dinheiro em caixa para bancar, se necessário, algum subsídio durante a crise ou mesmo para incentivar o uso de outros combustíveis não fósseis.
O governo tem feito reverso disso. Pensa que “quebrando” a empresa vai fazer os preços dos combustíveis baixarem. Vai acontecer o contrário. Teremos, neste caso, os reis levando a todos para o inferno.
Falta ao governo planejamento estratégico de Estado. Não é levando tudo que é assunto para a lógica política e eleitoral que sairemos da atual crise, muito menos fugindo das responsabilidades para as quais foram eleitos.
Quando o governo propôs a alíquota única do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS, sabia-se que a medida não teria o condão de resolver o problema da alta de preços – pode até dar um alívio –, mas nunca solucionar, pois o problema dos preços não é apenas as alíquotas de impostos, tanto assim, que nem foi implantada e pelos novos aumentos nada vai representar de redução do preço na bomba.
O governo e seus próceres adotaram a medida para terceirizar com estados a responsabilidade por um problema que não possuía e não possui capacidade para solucionar.
Vejam o resultado: privou-se estados e municípios de receitas que a União terá que compensar, ou seja, mais recursos saindo dos cofres públicos, e os preços dos combustíveis continuam os mesmos … e aumentando.
Uma das mais importante e antiga lição diz que você não resolve um problema atacando os efeitos sem atacar a causa.
O atual governo, talvez, imagine que possa solucionar os problemas nacionais fazendo o contrário disso, quem sabe ajude fazer “arminha” ou usando a pistola que Cristo não teve a oportunidade de comprar.
Assim, os ladrões vão levando os reis aos infernos ou invés destes os levarem ao paraíso.
Abdon Marinho é advogado.