UM PÂNTANO DAS ARÁBIAS.
Por Abdon C. Marinho*.
SUSPEITO – apenas suspeito –, que mesmo os devotos mais ingênuos do ex-presidente já perceberam que mito, em sentido figurado é “uma pessoa ou um fato cuja existência, presente na imaginação das pessoas, não pode ser comprovada; ficção”. É dizer, aquela pessoa que a despeito de toda a vida pregressa foi “construída” como um cidadão de bem, bom pai de família, patriota, seguidor das leis e defensor da ética, efetivamente é um mito, ou seja, não existe, é uma ficção.
Na história da nossa tão vilipendiada República, não me recordo de nenhum episódio envolvendo um presidente no exercício do cargo com contrabando de jóias, com a utilização da estrutura pública, de Estado, para prática de crimes em série contra a nação brasileira.
Acho que nem mesmo a notória presidência de Collor de Melo, com toda sua “loucura” chegou a tanto.
Inimaginável que os generais-presidentes, na longa noite da ditadura militar que durou 21 anos, admitissem à incorporação ao patrimônio pessoal, um presente dado por alguma nação ao presidente da república.
Há um episódio bem ilustrativo ocorrido nos fins dos anos setenta, em que o penúltimo general-presidente, Ernesto Geisel, tomou conhecimento que um irmão seu recebera de presente um veículo fusca de algum empreiteiro “doido” para agradar o poder.
O general-presidente chamou-o as falas: — e esse carro?
O irmão foi logo se explicando: — olha, foi um presente, não pedi, não fiz nada por conta disso … mas se você quiser eu devolvo imediatamente.
O general-presidente: — que você vai devolver é algo que não se discute. O que estamos tratando aqui é se você será preso ou não.
Vejam, um fusca, lá pelos fins dos anos setenta, deveria valer o correspondente hoje a 50 mil reais.
Não faz muito tempo a imprensa noticiou que o caçula do presidente ganhara um veículo de uma marca qualquer de uma empresa que tinha interesses em realizar negócios com o governo pai, funcionando o filho como um “abridor de portas” nos ministérios. Além do carro sabes de diversas outras vantagens indevidas, divulgadas à exaustão ou, de tão banais, ignoradas.
Não tivemos notícias do pai-presidente chamando o filho ou os filhos para dizer-lhes que tais comportamentos eram incompatíveis com o decoro do cargo que o pai ocupava.
São outras réguas a medirem o caráter e o decoro.
Meu pai, com sua sabedoria própria dos analfabetos, costumava dizer que só podíamos dar aquilo que tínhamos.
Um pai sem moral não pode ensinar ou cobrar bons exemplos dos filhos.
Imagino que o general Geisel – aquele que determinou a devolução imediata do presente do irmão e ficou em dúvida deveria trancafia-lo na prisão –, esteja a retorcer-se no túmulo ao tomar conhecimento, do além, do caso de um ex-capitão das forças armadas que chegou à presidência da república e que recebeu presentes de elevadíssimo valor e, muito pior que isso, fez uso dos militares que serviam a si e ao governo para “contrabandear” tais presentes para o solo nacional, sem o pagamento devido dos tributos.
No caso em tela, o papel dos militares brasileiros foi servir de “mulas” ao contrabando.
Que triste papel.
O general deve perguntar-se como conseguiram chegar a tamanha degradação. Sim, as pessoas que tiveram boa formação têm dificuldades para cometer ilícitos. Elas sabem que fazer a distinção entre o certo é o errado.
No episódio dos presentes ofertados pelo ditador saudita, o almirante que chefiava à delegação os recebeu e, segundo o próprio, não procurou saber o que tinha nos pacotes. Os distribuiu entre os membros da delegação que o acompanhava para que os mesmos os fizesse chegar ao destino: as mãos do presidente.
Um dos presentes, no valor de quase meio milhão, chegou ao destino se se encontra com o presidente; o segundo foi apreendido pela alfândega.
O almirante das Forças Armadas, recebeu os pacotes com os supostos presentes e não perguntou o que se tratava ou pediu qualquer documentação para que apresentasse as autoridades alfandegárias brasileiras ou mesmo sauditas, caso fosse perguntado.
E, isso porque vinham em um voo de carreira.
Apesar disso, o almirante não teve curiosidade ou procurou por alguma forma cumprir seu papel. E se fossem pacotes com drogas? E se fosse algum artefato radioativo? Ou um corpo humano desmembrado? Não deram sumiço a um jornalista fazendo sumir seu corpo?
O almirante, simplesmente, foi para o hotel e distribuiu entre seus acompanhantes, também militares, os pacotes para que chegassem ao presidente.
Chegando ao Brasil, no aeroporto internacional, a comitiva, embora tendo recebido presentes que “desconheciam o conteúdo” não foi orientada a passar pelo corredor dos que tem algo a declarar, mas sim, pelo contrário, foi orientada a passar pelo corredor do “nada a declarar”.
Pois bem, mas tendo um dos membros da comitiva sido retido para verificação da bagagem e se constatando o valiosíssimo presente, mais de 16 milhões de reais, com certificado de famosa joalheria, o almirante ficou sabendo do que se tratava, mas, ao invés de informar a alfândega que outro pacote contendo idêntico presente, ou chamado o outro integrante da comitiva que conseguiu passar sem ser molestado, nada disse ou fez, pelo contrário, tentou foi liberar o pacote apreendido dizendo tratar-se de presente para a primeira-dama.
Ora, um almirante, como sólida formação militar e institucional, diante de tal situação não sabia que o seu compromisso com a pátria era fazer o certo? Não sabia que era o caso de se aplicar o artigo 142 da Constituição Federal? Não conhecem o artigo 142 de cor e salteado?
Ora, o artigo 142 diz que: “Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Ao tomar conhecimento que nas bagagens que estavam sob sua autoridade continham presentes de alto valor e que deveriam ser declarados à alfândega para incorporação ao patrimônio nacional, não deveria ter chamado o outro integrante para que passasse pela a alfândega e declarasse o outro presente? Esse não é o comportamento que se espera de alguém formado na missão de defender a pátria?
Pelo comportamento demonstrado no episódio, sou tentado a acreditar que o único lamento que deve ter existido foi pelo fato da alfândega ter apreendido o pacote de maior valor (16 milhões) e não o outro avaliado em meio milhão de reais.
O almirante Tamandaré deve ser outro que estar a revolver-se no túmulo.
Na hora que o almirante e seus subordinados militares souberam o que continham os pacotes e que acima de mil dólares deveriam declarar e pagar o imposto ou preencher a guia de que pertenceriam os bens a união e não fizeram isso, imagino que tenham se “desinvestidos” do papel de defensores da pátria para investirem-se no papel de contrabandistas.
O pior estaria por vir. Comprovando o interesse em apropriar-se dos presentes – pois se fosse para incorporar ao patrimônio da união bastaria preencher a guia própria, inclusive em relação ao outro “presente” que entrou de forma clandestina –, as maiores autoridades do país, presidente da república, ministros de Estado, passaram quase dois anos tentando desembaraçar o contrabando na base da pressão, sem pagar os impostos e sem preencher a guia de que o bem pertenceria a união, sendo que a última “investida” contra a alfândega deu-se na antevéspera do ex-presidente “fugir” do país.
Um fato relevante – não sei se verdadeiro –, que os envolvidos neste pântano chegaram a solicitar que o “presentes” apreendidos fossem devolvidos ao doador.
Como assim? Não era mais fácil só incorporar ao patrimônio da união? Ou a ideia de devolvê-los seria para receber por outra forma e em caráter pessoal?
Temos um pântano das arábias. Com diversas autoridades do país atentando, de forma vergonhosa, contra os interesses nacionais.
Uma derradeira pergunta, para evitar qualquer questionamento sobre a quem pertence os presentes apreendidos se faz necessária: se o ex-presidente não fosse o presidente no momento da doação, mas sim, um obscuro deputado escondido no fundão da Câmara dos Deputados, ele receberia os presentes de tamanha monta?
Se você acha que não então você sabe que os presentes foram dados ao “presidente” e não a pessoa e, por isso mesmo, pertecem ao país.
O que tentaram fazer, e felizmente não conseguiram, foi pegar na “mão grande” algo que não lhes pertenciam.
O código penal brasileiro deve ter alguma tipificação.
Certamente, voltaremos ao assunto.
Abdon C. Marinho é advogado.