O OUTONO DO CORONEL.
UMA notícia se impõe: o pedido de prisão do ex-presidente José Sarney. Ainda que seja uma clausura domiciliar ou um monitoramento através de tornozeleira eletrônica, o fato é que o simples pedido já se reveste de gravidade ímpar. Reputo ser mais grave que os idênticos pedidos contra o presidente do Congresso Nacional Renan Calheiros, do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e do senador Romero Jucá. Sarney é emblema. Se deferido, pelo Supremo, o pedido de prisão, a mácula, já indelével, muda de patamar. Será, acredito, o primeiro ex-presidente da República e membro da Academia Brasileira de Letras a sofrer tal constrangimento em tempos de democracia plena.
O ex-presidente, até aqui, era tido como alheio aos escândalos que transformou o serrado da capital federal num pântano de lama.
As lideranças maiores da República iam (não sei se ainda irão) a sua casa render-lhe homenagens e pedir-lhe conselhos e orientações. Um detalhe curioso, e que poucos perceberam, é o fato de nos últimos dias em que se discutia o impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, enquanto todos iam a Temer, o presidente interino, foi a Sarney, a sua casa. Prova inconteste da sua influência.
Em pleno outono era como se o velho coronel vivesse a sua primavera de poder.
Um outro reconhecimento - das pessoas que têm reconhecimento a dar –, foi feito pelo ex-presidente FHC, que o reconheceu, nos livros que narram suas memórias da presidência, como um escritor. Vai além, diz sê-lo um amante da cultura e dos livros. Um intelectual.
Embora, como diz o ditado, "em terra de cegos, quem tem um olho é rei”, Sarney não apenas colhia as vantagens da longa experiência obtida na vida pública em meio às nulidades que assumiram o poder da nação, até, então, era considerado um gênio da política brasileira.
Ora, para o bem ou para o mal, não se tem como negar sua "expertise" nesta área, sobretudo, quando tantos outros tidos como paladinos da moralidade, caíram bem antes dele. Não que ele nunca tenha feito nada de errado, sabe-se, desconfia-se, que tamanha longevidade na carreira política, se deva justamente ao oposto.
A diferença, é que, até agora – exceto por aquele contratempo dos atos secretos quando presidiu o Senado –, nunca se teve nada de mais grave contra si, com provas tão robustas quanto às alegadas para reclamar as medidas restritivas de liberdade.
As razões para que nunca tenha sido apanhado falando ou fazendo o que não devia, remete aos cuidados que sempre adotou.
Certa vez – segundo o relato de um amigo –, o ex-presidente, estando em Brasília e precisando falar com um dos filhos, pediu a uma visita do Maranhão que no regresso ao estado natal fosse ao filho pedir que este fosse à capital ter com ele. A visita sem se dar conta o atalhou: – Mas, presidente, vamos ligar para ele. Tenho o número aqui. Sarney o interrompeu: – Também tenho o número dele. Mas prefiro que o recado seja dado pessoalmente.
A narrativa talvez não passe de lenda. Em todo caso, o certo é que o ex-presidente, em tempo de devassas telefônicas, nunca foi “habitué" em nenhum grampo. Agora mesmo, estas conversas que, segundo dizem, caucionam o pedido de restrição, foram feitas em um ambiente de conversa intima, com alguém de confiança, por alguém considerado um filho.
Sem desmerecer o trabalho da Procuradoria Geral da República, nem tão pouco deixar louvar o imenso serviço que tem prestado à causa da cidadania brasileira e entendendo que todos devam ser investigados – até mesmo um ex-presidente que reclama os relevantes serviços prestados ao país em 60 (sessenta) anos de vida pública, como alegado –, advogo que um pedido de prisão precisa de fatos mais concretos para se sustentar.
Confesso que não vi – não nos diálogos privados divulgados até aqui –, nenhuma atitude concreta de obstrução à Justiça. Acredito que, até aqueles que desejam ver Sarney, Renan, Jucá, Cunha e tantos outros atrás das grades, se bem analisarem, também não enxergarão isso. Não tiveram – se analisarmos apenas as conversas gravada, repito – uma atitude concreta de obstrução.
Os cidadãos livres, investigados ou não, têm o sagrado direito de, sobretudo, em ambiente privado, dizerem o que acham de determinada situação, lei, etc. Sendo parlamentares, e, principalmente por isso (embora possa se dizer que legislam em causa própria), podem dizer que esta ou aquela lei precisa ser mudada, sofrer alteração, etc. Isso, ao menos em tese, não constitui crime. Do mesmo modo, não vejo nada demais um investigado dizer que vai constituir um advogado que conhece este o aquele julgador, para que possa falar com ele. Nestes casos, o julgador que se sentir impedido, por algum motivo, que decline da causa, não sendo possível declinar ou não se sinta impedido, que julgue conforme sua consciência. A parte não comete um crime por isso.
O nosso direito consagra a licitude até do preso evadir-se da cadeia. Se foge e é recapturado, o máximo que sofre são punições administrativas.
Como querer que investigados não discutam ou vejam as melhores estratégias para sua defesa?
A douta PGR equivoca-se ao colocar em idêntico patamar, ou mais grave – aqui me refiro apenas aos diálogos gravados –, as condutas de Sarney, Jucá e Renan, que aquelas praticadas pelo ex-senador Delcídio do Amaral, fazendo com que tivesse a prisão aprovada pelo STF.
Discordo, no caso do ex-senador e líder do governo petista, ele estava em posição de obstrução, comprando o silêncio do preso Nestor Ceveró por intermédio de sua família.
Do mesmo modo, a situação dos líderes do PMDB, estão aquém de serem comparadas, por exemplo, aquela do ex-ministro Aluízio Mercadante, flagrado na tentativa de suborno ao ex-assessor do ex-senador Delcídio do Amaral; ou a situação da presidente afastada Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula no episódio da nomeação para usar em “caso de necessidade”; ou, ainda, a situação em que a presidente afastada nomeou um ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ, conforme consta dos autos, com o propósito do mesmo soltar os malfeitores presos pela Operação Lava Jato.
Tais episódios, sim, clara obstrução à justiça e para os quais, ainda não sabemos, exceto o caso do ex-senador, não se reclamou a prisão cautelar.
Acho que todos os fatos precisam ser esclarecidos com a punição exemplar dos culpados, caso existam. Mas não podemos descuidar dos valores maiores a serem preservados, como a democracia, a liberdade, o devido processo legal.
Quanto ao ex-presidente Sarney, caso as provas apontem na sua direção, que responda no rigores da lei.
Em sendo culpado, julgado e condenado, só nos cabe um exame sociológico (e talvez psicológico) sobre o vício da delinqüência. Um ex-presidente da República, ex-governador, ex-senador, imortal de diversas academias de letras, inclusive da Academia Brasileira de Letras - ABL, possuidor de fartas aposentadorias, deveria se preservar de certas atitudes, inclusive, a de receber “ajudas" oriundas de recursos desviados, conforme dizem constar na colaboração do senhor Sérgio Machado.
Em algum momento da vida, pessoas tão sábias deveriam pensar que dinheiro não tem tanto valor, que não vale mais que um bom nome, um biografia escorreita.
O ex-presidente Sarney vive seu outono. O pior dos outonos.
Abdon Marinho é advogado.