A VERDADE QUE ALVOROÇA A CASERNA.
Por Abdon Marinho.
HÁ ALGUMAS semanas, com o alastramento da pandemia do novo coronavírus e aumento do número de mortos, escrevi um texto no qual fazia a pergunta essencial no seu título: “Quem herdará os mortos da pandemia?”.
Nos últimos dias o país foi tomado por uma imensa polêmica envolvendo uma fala do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal - STF, que criticava a condução do governo no controle da pandemia e dizia, entre outras coisas, que as Forças Armadas estariam se associando a um genocídio.
Foi o que bastou para o “mundo” vir abaixo.
Os comandantes das Forças Armadas, através do Ministério da Defesa, emitiram notas de protestos, militares fardados e de pijamas deram declarações de repúdio, e, até entraram com uma representação contra ministro na Procuradoria-Geral da República, para que esta adotasse as medidas “necessárias” contra o ministro por suas colocações que, supostamente, feririam a Lei de Segurança Nacional, a famosa e temida LSN.
O próprio ministro, diante da repercussão da fala, veio com explicações, fazendo uma espécie de “mea culpa”, dizendo que, embora tenha falado através da rede mundial de computadores – uma live –, suas colocações se dirigiam ao ambiente acadêmico e, pelo contrário, tinham a intenção de preservação das Forças Armadas, excessivamente envolvidas com o governo do senhor Bolsonaro.
Desde que resolvi escrever minhas impressões sobre os fatos que vivemos – e, apesar de recente já são quase mil textos –, sempre tive um posicionamento crítico a respeito dos ministros falastrões da nossa Corte Suprema.
Acho que não comporta a julgadores – ainda que em prejuízo do livre exercício da cidadania –, emitirem opiniões fora dos autos que julgam. É o ônus que têm de pagar pela escolha profissional que fizeram.
O posicionamento público ou político tem a única serventia de enfraquecer as instituições que participam e a própria democracia.
Dito isso, reafirmo a posição – sempre externada –, de contrariedade à fala do ministro e de qualquer outro julgador que se achar no direito de dar “pitaco” em tudo que acontece no país, inclusive, sobre os assuntos que, ao menos em tese, poderá julgar.
Entretanto, devo deixar claro, também, que a crítica que faço à fala do ministro – e não a fiz antes por estar preocupado com a saúde de um dos meus irmãos que esteve internado em unidade de terapia intensiva por conta da covid-19 –, faço pela pessoa que se manifestou, não pelo conteúdo.
Não fosse o autor das colocações, um ministro da Suprema Corte, não teria problema ou dúvida alguma em subscrevê-las.
Exceto por uma ou outra ressalva, os questionamentos estão perfeitos e deveriam, ao invés de atrair críticas, atrair a reflexão do governo federal e das próprias Forças Armadas.
O que está ocorrendo no Brasil, no que se refere ao combate à pandemia do novo coronavírus é algo gravíssimo. Nunca na história do país – pelo menos na história recente –, nos deparamos com uma tragédia de tamanha magnitude.
Enquanto escrevo este texto, nesta tarde de domingo, o número de óbitos por conta da pandemia se aproxima – se é que já não ultrapassou –, a casa dos oitenta mil mortos, sem que o governo do senhor Bolsonaro tenha uma posição clara e cientificamente aceita de como deve se combater esse vírus mortal.
Dificilmente, para nossa tristeza, até o final desta tragédia, alguma família brasileira escape do sofrimento causado pela dor da perda de um ente ou um amigo, sem que o governo demonstre qualquer solidariedade, empatia ou faça o seu papel de buscar a melhor alternativa visando salvar o maior número possível de pessoas.
Em sentido inverso, temos é o governante, dia após dia, se envolvendo em polêmicas empíricas e/ou teses exdrúxulas que em nada tem ajudado no combate à pandemia.
Outro erro grave é que estamos há mais de sessenta dias sem um ministro titular na pasta da saúde, alguém respeitado pela comunidade científica nacional e internacional, com conhecimento do assunto ou que, pelo menos, não seja questionado pelo desconhecimento do tema.
A situação torna-se ainda mais grave – infinitamente mais grave –, quando ao invés de cientistas, temos o Ministério da Saúde “tomado” por militares, tanto da reserva quanto da ativa.
Noutras palavras, o ministro Gilmar Mendes acerta quando pontua que esta indevida “usurpação” por parte dos militares de um ministério civil e que, por sua natureza, deveria ser conduzido por cientistas, ainda mais durante uma pandemia, coloca as Forças Armadas como participes de um genocídio.
O alvoroço na caserna, a suscitar tantos protestos, foi causado principalmente pelo termo genocídio utilizado pelo ministro falastrão.
Com relação a isso (ao termo genocídio utilizado), menos do que crítica, deveria ser motivo de agradecimento e de uma reflexão visando uma mudança de rumos no combate à pandemia.
Ora, se o governo federal, ainda que através de narrativas mais diversas, possa compartilhar a culpa pela imensidão de mortos causada pela pandemia, com governadores e prefeitos, o mesmo mesmo não poderá fazê-lo naquilo que é sua responsabilidade exclusiva, que é a proteção dos povos indígenas.
Em relação a estes povos, é o governo federal, através de suas fundações e órgãos, o responsável exclusivo, e sabemos que ele não tem se desincumbido desta missão, seja por não impedir a invasão das reservas e aldeias por garimpeiros e outros exploradores das florestas, provocando a contaminação daquelas comunidades, seja por não dispensar um tratamento médico adequado aos indígenas que estão ou possam vir a ser infectados pelo vírus.
Considerando que muitos destes povos já estão restritos a um número reduzidos de membros, caso venham a perecer toda uma etnia estaremos, sim, diante de um genocídio.
Vamos torcer para que isso não aconteça, mas as políticas governamentais, tendo à frente o Ministério da Saúde – e o mundo inteiro está assistindo –, conduz para que o pior aconteça.
Quando tudo isso passar, caso o pior aconteça, o comportamento de cada governo será avaliado, e caso, infelizmente, seja comprovado o genocídio de povos indígenas, o governo brasileiro e seus agentes fatalmente deverão responder perante as Cortes Penais Internacionais –, isso, se não responderem, também, perante a Justiça brasileira.
A forma de combater a pandemia foi – e está sendo –, uma posição política de cada governo.
Quem agiu certo e no tempo adequado, colhe os melhores resultados. Os que, pelo contrário, se deixaram cegar pelos seus próprios conceitos, amargam os piores resultados e algum dia serão chamados para receber a suas heranças.
As Forças Armadas do Brasil, que têm um papel bem definido na Constituição Federal, ao aceitarem sair da sua missão para exercerem cargos – muitos ainda na ativa –, em um governo civil, absurdamente ideologizado, deveria saber o risco que correria – e que está correndo, inclusive, o de perder o prestígio que tanto se esforçou para conquistar nas últimas décadas.
Os mais jovens talvez não lembrem, mas, quando a população compreendeu que o movimento de 1964 implantara uma ditadura no país, de lá até 1985, ou seja, por vinte e um anos, as Forças Armadas passaram a ser vistas como as Forças Armadas da ditadura. Com o retorno do poder aos civis a partir de 1985, passaram a ser vistas com desconfiança pela população, tanto assim que temiam alguma espécie de revanchismo por parte dos governos civis.
Os anos do pós ditadura têm sido para as Forças Armadas se recomporem com a sociedade brasileira.
Somente em tempos recentes passaram a ser vistas como essenciais ao país e a conquistar a simpatia da população e é isso que se arriscam a perder.
As diversas tentativas do atual gestão – calçado na tolerância obsequiosa de alguns militares e no saudosismo de alguns generais de pijama –, de “militarizar” o governo ou de se sustentar usando as Forças Armadas, tem o efeito deletério de dividir a nação e devolver àquela instituição todo o desprestígio e desconfiança dos anos de ditadura e das primeiras décadas pós o regime de exceção.
As Forças Armadas não precisam ficar alvoroçadas com as colocações “indevidas” do ministro Gilmar Mendes, precisam, sim, compreenderem o seu papel constitucional numa sociedade democrática, mantendo-se equidistantes de contendas políticas ou de participação de estratégias toscas de governo, sob pena de perderem não apenas o respeito dentro da nação, mas, também, no âmbito internacional, e, inclusive, responderem perante as cortes internacionais na eventualidade de se comprovar genocídio contra os povos indígenas do Brasil.
Devem refletir sobre isso e entenderem que fizeram e fazem muito mal a si mesmas e à nação, deixarem uma posição de Estado para se posicionarem politicamente a favor de uma facção política.
Demoraram muito para conquistar um respeito que têm colocado em risco ao longo do último ano e meio. Não tardarão a ouvir o velho bordão do tempo da ditadura: militares, de volta aos quartéis!
Abdon Marinho é advogado.