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Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Segunda-feira, 25 de Novembro de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho


OS TRIBUNAIS VIRTUAIS ETERNOS. 

Por Abdon C. Marinho*.

WELGER FREIRE dos Santos, advogado dos mais brilhantes do país e meu sócio há quase trinta anos, costuma dizer que pensar não é arte fácil de se praticar e que exige certa dedicação e concentração.

Dando razão a sua opinião, nos últimos dias tenho me dedicado a refletir sobre as consequências sociais e jurídicas (presentes e futuras) para um dos fenômenos surgido na nossa era, e que temo pelo nosso futuro – não tando eu, pois se as estatísticas estiverem certas minha passagem por aqui, com sorte, não ultrapassa mais duas décadas –, mas, sobretudo, das gerações vindouras. 

Falo isso a respeito dos notórios tribunais virtuais, que com a conivência e omissão de muitos, por ignorância ou má-fé, vêm ganhando status de eternos.

Um dos gênios incontestáveis da humanidade, Albert Einstein, disse certa vez: “não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com pedras e paus”. Dizia isso notando que o poderio bélico da atualidade (já assim em meados do século passado quando morreu) é tamanho destruiria tudo em seu caminho, relegando o homem ao seu estado primitivo. 

Com os tribunais virtuais eternos, dar-se algo bem parecido. Evoluímos tanto tecnologicamente que esquecemos os fundamentos do conhecimento analógico e até mesmo de como chegamos aqui. 

Ora, até bem pouco tempo era normal a tortura física e psicológica, os castigos corporais, o “olho por olho, dente por dente”, do código de Talião, a crucificação, os empalamentos e diversos outros castigos cruéis e degradantes, inclusive, que as penas passasse das pessoas que cometeram os delitos, para seus familiares, filhos, pais e por gerações; era comum que se jogasse um condenado no poço e que o esquecessem por lá até que morresse. 

Muitas das penas relatadas acima – e outras quem nem ouso imaginar –, persistem em algumas ditaduras e/ou regimes totalitários ao redor do mundo. Onde, o Estado usa do seu poderio para oprimir e massacrar o seu povo e os inimigos pessoais dos poderosos ou mesmo aqueles que apenas ousam divergir. 

Quando estudante de direito, aprendi com o mestre Alberto Tavares, que as interpretações das leis deveriam ser feitas com o que chamava de “grano salis”, ou seja, com parcimônia ou moderação e, também, que as normas legais deveriam ser compatíveis com o entendimento da sociedade a quem se direcionava, é dizer, estarem ao alcance da compreensão do “homem médio”, do cidadão comum, e, ainda, que a lei não era sucedâneo para vingança privada ou estatal. 

E a razão de ser assim é que qualquer cidadão pode ser sujeito ativo do crime. Não existe “cidadão de bem” que em algum momento da vida seja imune ao crime.

Outro grande jurista maranhense, João Damasceno Moreira, o saudoso Bazar, criminalista de mão cheia, sempre que me encontrava e, notadamente, quando o perguntava sobre suas atividades laborais na seara criminal exclamava, parafraseando outros grandes criminalistas: — excelência, o crime persegue o homem como sua própria sombra! 

A Constituição Federal de 1988, em boa hora, trouxe diversas garantias aos cidadãos sujeitos ativos de crimes, conforme podemos verificar abaixo, e que acho relevantes para o presente texto:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; 

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;  

XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: 

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens; 

c) multa; 

d) prestação social alternativa; 

e) suspensão ou interdição de direitos;  

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo; 

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento; 

e) cruéis; 

 

Pois bem, fiz todas essas considerações para adentrar no assunto que motivou minha reflexão sobre a existência de tribunais eternos, que apesar de virtuais executam penas reais nas vidas das pessoas que cometeram crimes e/ou falhas com consequências diversas para seus familiares muitos dos quais nem existiam na época dos dos fatos. 

O caso que despertou minha atenção e que cai como uma luva sobre os tribunais virtuais eternos  é o que envolve o técnico de futebol Cuca. 

Nos últimos dias, por conta de sua contratação por um clube de futebol – a despeito de ter sido técnico de outros grandes clubes ao longo da carreira –, teve a sua vida, a vida de sua família e mesmo a vida dos seus companheiros de infortúnio e de suas famílias viradas de ponta cabeça por conta de um crime cometido em 1987 e pelo qual foram condenado, dois anos depois, 1989, a 15 meses de prisão, em Berna, Suíça. 

Emissoras de rádio, televisão, sites, redes sociais, formaram um novo tribunal para revisitar o caso, com tanto destaque, que o cidadão que cometeu o crime (grave) foi obrigado a pedir demissão do clube – e não sabe, depois da repercussão do caso, se achará outro emprego em algum lugar do país como treinador, sendo mais provável que mude ramo ou se aposente. 

O crime de estupro sob qualquer circunstância é abominável, ainda mais se praticado em grupo e contra uma menor de idade – que é o caso, ou seja, indesculpável sob todos os aspectos.

Mas, vejam, os cidadãos brasileiros foram julgados nos moldes das leis suíças e receberam pena de 15 meses de prisão, o que, em quase todo lugar do mundo, não leva ninguém à prisão, sendo quase sempre substituída por alguma restrição de direito ou multa. 

Como o processo seguirá em segredo de justiça por mais algumas décadas, além das informações de terceiros, imagino, pela pena aplicada (15 meses) que a conduta dos condenados tenha sido proporcional a ela. 

O que fez o tribunal virtual eterno? Pegou a conduta de 1987 (grave, abominável, etc), trouxe para os dias atuais, aplicou a pena da legislação brasileira e a “executa” de forma permanente contra os cidadãos brasileiros que a praticaram, com os efeitos da mesma sobre seus familiares e amigos.

Vejam, não estou dizendo que o crime não ocorreu, que não foi grave, que não foi abominável, horrendo e tudo mais, o que estou dizendo é que a Constituição Federal proíbe pena de caráter perpétuo ou que as penas passem das pessoas dos condenados, como estão tratando o caso, sem que ninguém (ou quase ninguém) se atente para ordem jurídica. 

Em 1987 ainda cursava o ensino médio no Liceu Maranhense, em 1989, fazia cursinho pré-vestibular e já tendo se passado 34 anos da condenação, os efeitos daquela condenação de 15 meses de prisão continua a produzir efeitos contra aqueles condenados. 

Ora, mesmo que o cidadão tivesse condenado por homicídio, matado a mãe (crime mais grave do ordenamento jurídico brasileiro) 34 anos depois, já teria pago “sua dívida para com a sociedade”. 

Ao meu sentir,  não faz sentido que uma condenação de 15 meses continue a produzir efeitos até hoje e até contra outras pessoas, filhos dos condenados, que sequer existiam na época dos fatos. 

O meu alerta e o meu temor é que o precedente “Cuca”, se torne a nova baliza das relações jurídicas nacionais – essa é a razão das minhas reflexões –, violando garantias constitucionais que muito nos custaram alcançar. 

Imaginemos que um cidadão, com dezoito ou vinte anos, cometa qualquer deslize ou falha ou mesmo cometa um crime, ele e seus parentes e amigos terão que conviver sob os efeitos de tal mácula por toda a eternidade? Se assim for, essa não é uma pena de caráter perpétuo, cruel e não está passando para além da pessoa do condenado, coisas vedadas pela Constituição?

Imaginemos, como dizem os mais sábios que eu, sujeito ativo nato para o cometimento de algum delito ou mesmo qualquer falha ou improbidade, pelo precedente do tribunal virtual eterno, não terá mais qualquer chance de reabilitação pelo resto da sua vida bastando que erre ou seja condenado ou mesmo processado por algum fato, em qualquer momento de sua existência. 

O TVE sempre estará à espreita. Fulano de tal, quando tinha 18 anos envolveu-se em um acidente trânsito, foi acusado de tal crime; Beltrano de tal: — ah, esse é filho de fulano de tal, que em mil novecentos e carne de porco, cometeu crime tal, “deleta”. 

Já pensaram que situação exdrúxula é essa que vivemos? É isso mesmo que queremos para nós e para nossa descendência?

Essas são algumas das minhas reflexões, antes de me condenarem por elas, também, reflitam: quem nunca …?

Abdon C. Marinho é advogado.