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Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Domingo, 24 de Novembro de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho


A SAGA DE JOSÉ CALHEIRO DE  MARINHO. 

Por Abdon C. Marinho*.

— AH, ABDON, melhor não tê-lo conhecido. O velho era muito ignorante. 

Assim meu irmão Armando referiu-se, certa vez, ao nosso avô, José Calheiro, pai do nosso pai, em uma das nossas “palestras” de boca de noite quando vem por aqui. 

Já é uma “quase” tradição, sempre que sai do interior e vem passar uns dias comigo, dedicamos um tempo conversando sobre as memórias familiares, sendo alguns anos mais velho e possuindo uma memória muito boa, vai me contanto as histórias dos nossos tios, primos, fatos que se passaram quando ainda era muito novo ou mesmo anteriores ao meu nascimento. 

Uma das últimas vezes, se não foi a última, ainda antes da pandemia, nos ocupamos de fazer uma espécie de árvore genealógica colocando, a partir dos nossos avós paternos, todos os nossos tios e tias e ainda os primos dos quais lembrávamos e os seus filhos e até os filhos destes. 

Sempre gratificante a lembrança dos tios e tias: tio Antônio; tio Francisco (Chiquinho); tio Deolindo; tio João; tio Pedro; tia Malfisia; tia Francisca (Chiquinha); tia Zulima; tia Josefa … seus filhos, netos, momentos tristes e alegres. 

Sobre o nosso próprio ramo: meu pai Vanderlino (que agora, por ocasião de pesquisas em documentos, descobri que originalmente chamava-se ou encontra-se registrado como tal no cartório de Assú (Açú), como Wander Lindem ou erram lá quando o registraram ou aqui), ele de Angicos; e minha mãe, Neusa, natural de Açú, casaram-se na cidade dela no dia em que ela completou 19 anos, em 1950. 

Foi em tal ocasião que o querido irmão disse que o meu avô era muito rude. 

É provável que fosse mesmo, ou que essa avaliação tenha partido da percepção que temos hoje para avaliar fatos pretéritos ou, ainda, do fato do meu irmão ser muito jovem quando meu avô morreu. 

Mas, certamente, era um “velho” duro na queda, arrojado e com um poder de comando sobre a família inquestionável. Como, aliás, eram os chefes de família daquela época. 

Outro dia, em um dos grupos de aplicativos da nossa família, uma bisneta do meu avô perguntou se alguém teria uma fotografia dele. Minha irmã mais velha lembrou de uma fotografia que teríamos na casa de uma das nossas primas, mandou buscar e postou no grupo. 

Foi quando, juntando uma informação daqui ou dali, resolvi escrever sobre a saga do patriarca. 

Independente de ser rude ou ignorante é certo que o José Calheiro tinha muita autoridade perante sua família e a exercia com “mão de ferro”. Basta dizer que na segunda metade dos anos cinquenta do século passado passado decidiu que viriam para o Maranhão, deixando para trás o sertão do Rio Grande do Norte, castigado pela seca. 

Ele e nossa avó, Maria Calheiro da Conceição, empreenderam uma verdadeira epopeia, com uma dezena de filhos, noras, genros, netos, e mesmo alguns amigos e parentes desses que se juntaram a nossa família para atravessarem, a pé, ou no lombo de animais, a distância entre o interior do RN ao interior do MA, onde vieram fixar residência. 

A epopeia foi programada com antecedência, mesmo porque não se desloca quase uma centena de pessoas (senão mais que isso), inclusive, dezenas de crianças com improvisos ou às cegas, sem saber por onde ir, onde parar, onde comer, beber, etc. 

Meu avô, apesar de não ser letrado, assim como quase toda a família eram de analfabetos, tinha discernimento das coisas. 

 Um ano antes (ou o que o valha), determinou que tio Pedro Calheiro, na época com pouco mais de vinte anos, o mais novo da sua prole (um ano mais novo que o meu pai e o mais desasnado dos filhos) que viesse em uma missão expedicionária localizar o melhor lugar para acomodar toda  nossa família nas terras do Maranhão. 

Assim foi feito, durante alguns meses tio Pedro percorreu o estado entendendo que o melhor lugar seria o povoado Centro Novo, entre Governador Archer, Gonçalves Dias, Dom Pedro e que, naquela época, sofria influência de uma das mais importantes cidades do Maranhão: Pedreiras. 

Quando tio Pedro retornou da expedição – e podemos chamar assim pois em meados dos anos cinquenta o interior do nordeste só tinha em abundância, a coragem do sertanejo, de resto faltava tudo, comida, estradas, água, comunicação, e tudo mais) –, iniciaram os preparativos para trazerem a família de José Calheiro e Maria Calheiro da Conceição para o Maranhão. 

Um dia, no começo dos anos dois mil, algum compromisso ou apenas uma viagem de passeio para rever os parentes, me colocou na estrada. 

Ao chegar no Povoado Independência, disse ao meu parceiro de viagens, seu Afrânio, entre aí, vamos até Pedreiras visitar tio Pedro. Chegando lá, disse que estava só passando para tomar a bença e que estava indo para o Centro Novo. Não se fazendo de rogado tio Pedro só disse: — Salete, arruma nossas coisas, vamos lá com Abdon, visitar os parentes. Acomodaram-se nos bancos traseiros do carro e seguimos para Gonçalves Dias e, de lá, para o Centro Novo. 

Esse era o tio Pedro, não perdia uma oportunidade de se encontrar com os irmãos, os sobrinhos, os sobrinhos-netos e parentada de uma forma geral. 

Foi nessa oportunidade, no percurso entre Pedreiras e o Centro Novo que foi nos contando a história do nosso deslocamento do Rio Grande do Norte para o Maranhão. Foi o último dos filhos de José Calheiro a nos deixar, já em 2011. Enquanto viveu, foi uma referência para vida de todos os irmãos e sobrinhos, sobretudo, depois que aqueles se foram. 

Quase todos os domingos tinha o hábito de me ligar para conversarmos, me dava conselhos, já advogado, me pedia alguma opinião. Herdou do “velho” o poder de liderança e todos os filhos ou netos dos seus irmãos o tínhamos como tal. 

O meu avô e sua filharada eram naturais de Angicos - RN, na verdade de um povoado desse município que ainda hoje é muito pequeno, não contado com quinze mil habitantes, segundo dados do IBGE. 

Imagino o impacto social naquela povoação o deslocamento de tantas pessoas. Meu avô e sua esposa não deixaram nenhum dos filhos para trás, do mais velho ao mais novo, todos deixaram o que “não” tinham e seguiram ao comando dos pais,  junto com eles, já suas famílias, esposas, genros, filhos e até mesmo outras pessoas que resolveram se juntar à caravana para buscar vida melhor no Maranhão. 

Sem estradas e vindos a pé e com animais, trazendo o pouco que possuíam – e o que dava para trazerem em baús ou jacás –, empreenderam a viagem para percorrerem mais de mil quilômetros, pelo roteiro atual, mais rápido (imagino que nos anos cinquenta fossem outros caminhos) enfrentando todo tipo de adversidades. 

As restrições de viagem eram tantas que outro dia soube que minha irmã mais velha – que na época da epopeia tinha cinco ou seis anos –, lembrava que não pode trazer sua boneca de pano por falta de espaço. 

Viajando pelo interior do nordeste, tendo que atravessar no mínimo mais dois estados, além do de origem e de destino, imagino o alvoroço que tal caravana, com homens, mulheres, crianças, animais, deve ter provocado por onde passava, muito embora fosse comum deslocamentos em caravanas. 

Assim, sob o comando de José Calheiro de Marinho, aportamos em terras maranhenses onde criaram filhos e deixaram para a posteridade uma descendência de pessoas sérias, honestas e trabalhadoras. 

A família Calheiro de Marinho, como disse anteriormente, ficou radicada no Povoado Centro Novo, trabalhando como agricultores, depois, principalmente, após a partida do “velho” fora se espalhando para outros lugares, com destaque para Pedreiras, naquela época uma das mais prósperas do estado e tida como a “capital do Mearim”.

A saga de José Calheiro de Marinho e Maria Calheiro da Conceição nos trouxe até aqui. Não somos só o que somos na atualidade, também somos a nossa história, o nosso passado, a história dos que vieram antes de nós. E por isso devemos honrá-los. 

Abdon C. Marinho é advogado.